Vocalização do texto literário - Editora Peirópolis

Vocalização do texto literário

A criança e o jovem têm o direito de enfrentar o desafio da leitura literária.
Como tornar esta experiência significativa?
Vou evidenciar um dos caminhos possíveis: a vocalização do texto literário. Ou seja: a leitura em voz alta, o conto de viva-voz e o poema declamado.
Por que evidenciar este caminho?
Porque a palavra no ar está muito próxima da palavra no papel.
A vocalização do texto literário, portanto, é capaz de revelar ao outro uma experiência semelhante à leitura literária.

Para percorrer este caminho, vamos ouvir a voz da memória…
Em sua obra ?O Galo Branco?, lançada em 1957, o poeta Augusto Frederico Schmidt relembra o poder arrebatador de um texto vocalizado. Vamos lá?

A lição de leitura Augusto Frederico Schmidt

Revejo-o gordo, como uma pequena pêra de barba, a fisionomia pacífica, os olhos sorridentes. Surgiu de repente e sentou-se, mal cabendo na cadeira, para dar-nos uma aula de português: hesitou ligeiramente sobre o que ia fazer, e buscou orientar-se perguntando-nos o que estávamos estudando àquela altura do curso ? pois viera apenas substituir o professor efetivo, então impedido por doença. Um dos alunos informou que trabalhávamos com os verbos irregulares.
– ?Verbos irregulares… verbos irregulares… ? murmurou ele, e logo, aumentando a voz: – Nada disto, vamos hoje é ler um pouco! Quero ver se vocês sabem ler !?

Para iniciar, escolheu um dos elementos mais aplicados da turma, um dos que se sentavam na primeira fila: ouviu-o, mas não ficou contente, e ao cabo de uns poucos minutos ordenou que outro aluno continuasse a leitura. Mesma impaciência, mesma insatisfação, ordem a outro menino para ler… Ninguém, na sua opinião, entre os vinte e poucos alunos, tinha jeito para aquilo; nenhum era capaz de decifrar um texto com o entendimento e a vivacidade necessários. Se bem me lembro, ele falou precisamente em alma, ?ler com alma?.
Foi a primeira vez que ouvi essa expressão, mas nós alunos não podíamos entender o que fosse ? ler com alma?. E Seu Firmo ? que tal era seu nome ? então propôs a dar-nos ele próprio o exemplo do tipo de leitura que pedia. Tirou da velha pasta um livro e pôs a ler.
Nunca ouvi ninguém ler assim. Era um capítulo de O Seminarista, de Bernardo Guimarães: o diretor do seminário mandara chamar o personagem para submetê-lo a severa inquirição, e o episódio alongava-se por umas três ou quatro páginas. Mas que vida, que interpretação, que realce não nos soube transmitir a voz do velho professor !
Não sei o que se passou no espírito dos meus colegas ? mas a minha vocação, o meu gosto, o meu pendor para a coisa literária, o meu pecado literário revelou-se precisamente naquele dia, naquela aula. De relance compreendi tudo que é possível fazer com as palavras: o que há de vivo, o que há de animado e palpitante nas linhas de um texto. Nunca me esqueci, nem esquecerei jamais do seminarista batendo na porta da sala do reitor, com a sua indecisão, o seu medo… As mesmas páginas de Bernardo Guimarães, muitas vezes depois relidas por mim em voz alta, nunca mais me proporcionaram a primeira emoção, forte e exata.

(Da obra ?O Galo Branco ? Páginas de Memórias?, de Augusto Frederico Schmidt. Livraria José Olympio Editora, 1957, Rio de Janeiro/RJ. Páginas 70 a 72.)

Experimente, agora, reviver esta ?emoção, forte e exata?, vivida pelo menino Augusto Frederico Schmidt. Leia e releia estes dois parágrafos daquele capítulo de ?O Seminarista?. Procure, nas suas releituras, descobrir ?o que há de vivo, o que há de animado e palpitante nas linhas de um texto?. Vamos lá?
Portanto, depois que os seminaristas se recolheram do recreio e que a sineta deu sinal da hora de repouso, Eugênio foi intimado pelo seu regente para comparecer no quarto do padre-mestre diretor.
Este chamado era terrível. De ordinário só tinha lugar quando o estudante tinha incorrido em alguma grave falta, e era quase sempre seguido de severas repreensões e por vezes de exemplares e rigorosos castigos. Transido de terror, posto que a consciência nada lhe argüisse, pálido e trêmulo como um réu, que vai ouvir a sentença de sua condenação, o pobre menino atravessou os longos corredores, e encaminhou-se para o cubículo do diretor, que ficava na extremidade do edifício.

(Da obra ?O Seminarista?, de Bernardo Guimarães, lançada em 1872. Editora Martin Claret, 2006, São Paulo/SP. Capítulo VI, página 55.)

A leitura literária é um diálogo do indivíduo com a sua intimidade ? mas com o mundo ali, ao redor, à flor da pele e do papel, com suas bagagens e seus símbolos. Em larga e profunda medida, é uma experiência de ?solidão? ? mas não de ?isolamento?.

A vocalização do texto literário permite, solidariamente, ?comunicar? esta experiência aos outros ? para que cada um se sinta convidado a reconstituir, solitariamente, as palavras em estado de literatura.

copyright do autor

*Francisco Marques (Chico dos Bonecos) é poeta, contista, professor e desenrolador de brincadeiras. Autor da “trilogia mirabolante” composta dos livros Galeio – Antologia poética para crianças e adultos, Muitos dedos, enredos – Um rio de palavras deságua num mar de brinquedos e Desvendério – Quem conta um conto omite um ponto e aumenta três, todos com a chancela “Altamente Recomendável” da FNLIJ. Para conhecer mais sobre o autor e ter acesso a textos e brincadeiras, visite seu site.

Add Comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Olá! Preencha os campos abaixo para iniciar a conversa no WhatsApp

PHP Code Snippets Powered By : XYZScripts.com