Uma mirada a mais pode abrir muitas conversas - Editora Peirópolis

Uma mirada a mais pode abrir muitas conversas

Se você chegou até aqui é porque deve ter acabado de ler A senhora da casa azul, escrito pelo Everson Bertucci e ilustrado pelo Juão Vaz. Quanta coisa há para se falar desse livro! Trata-se de um livro ilustrado. O que será que isso quer dizer? Nesse tipo de obra, o texto, as ilustrações e o projeto gráfico contribuem, juntos, para a construção da narrativa. Muita coisa é dita pelo texto e outro tanto pelas ilustrações e pelo projeto gráfico.

Para começo de conversa, vamos falar das cores presentes no livro? O que chamou a sua atenção a esse respeito? Um livro sobre escolhas, preferências, cores e só com duas cores, apenas? O que será que isso quer dizer? O final, aberto, não revela a cor preferida da bisa. E será que precisa? A abertura inclui o leitor. Junto com a bisa, é também a sua hora de escolher: qual seria a sua cor? Que cor atribuiria à casa de Georgina?

É provável também que você tenha chegado até aqui para saber qual é a cor preferida do gatinho, personagem que acompanha a saga de Georgina e Nico. Ele deve ter sua cor preferida, não?  Aliás, uma curiosidade: você sabia que os gatos enxergam tonalidades diferentes das nossas? E que o tom que eles enxergam é predominantemente azul? Só que esse gatinho tem algo especial. Você conseguiu descobrir o que é?

Há muitas Georginas por aí….

 A preponderância do azul, acompanhado pelo branco, reflete a dominação do biso, “senhor que tudo comanda: gente, construção, bicho”. As ilustrações do tabuleiro, do móbile e da caixinha de música também reforçam o lugar desse homem que manda e decide tudo. Aliás, você reparou como a sua mão é grande, quando surge prestes a manipular as peças ou dar corda na caixinha de música? Trata-se de um exemplar típico de um mundo machista em que os homens davam as cartas.  O verbo, conjugado no passado, não quer dizer que esse tempo acabou, mas serve para sublinhar a existência de uma grande e importante transformação em curso, embora ainda tenhamos um tanto a mudar.

Para além da cor, vale também refletir sobre o nome do livro – A senhora da casa azul.  Quem vai se “assenhorar” deste processo de mudanças e descobertas será Georgina. Não à toa o título se refere a ela, não é mesmo? E aqui, um segredo, que faz parte do processo de edição de um livro. No meio do caminho, o título da história foi alterado: de “A velhinha da casa azul” para “A senhora da casa azul”, justamente para enfatizar o seu lugar na narrativa, e como ela vai apoderando do seu desejo, aprendendo a escolher.

Recentemente, a mídia tem publicado denúncias e casos que refletem esse lugar de dominação dos homens em relação às mulheres, ajudando toda a sociedade a perceber tal modo de relacionamento como um problema a ser enfrentado por todos – homens e mulheres. Trata-se de um letramento necessário a esse respeito, algo que pode também ser trazido pela literatura e outras formas de arte.

O encontro de gerações

Quem promove toda essa mudança é Nico, o bisneto que, ao ganhar uma casa na árvore, vai transformar a vida de todos, desencadeando uma verdadeira revolução, com seus olhos frescos para o mundo, outras referências sociais e culturais, e com a sua liberdade de pensamento e de expressão de opiniões e vontades.

Aliás, liberdade e prisão são elementos opostos e presentes ao longo da narrativa, manifestados não apenas no texto, mas também na ilustração. Você reparou que, logo após o diálogo entre o menino e sua bisa, sobre cada um poder eleger a própria cor da felicidade, há uma página dupla em que surgem janelas com grades, como se fossem de um presídio? Contudo, elas são iluminadas, como que revelando caminhos. Mais adiante, janelas semelhantes reaparecem, mas agora sem grades, ocupadas por membros do menino Nico e pelo gatinho cego de um olho, companheiro presente em quase todas as páginas.

O Nico, além de ser o bisneto de Georgina, ocupa também um lugar de sua consciência. É o Nico, mas pode ser também a própria Georgina, e essa dupla relação transparece nos jogos de espelhos propostos pelas ilustrações. Qual é a figura que surge refletida no espelho quando Georgina se mira? Às vezes, ela mesma, em outros momentos, é o Nico que aparece como um reflexo ou oferecendo o espelho para que a bisa possa se mirar e se perceber.

Desvelando mistérios

Há tanto para se observar neste livro! A gente pode até assumir a posição de um detetive, como bem definiu o escritor argentino Ricardo Piglia, ao procurar compreender o papel do crítico, como aquele que busca desvendar, descobrir o que está presente no texto, as referências, os diálogos com outros escritos… Partindo dessa ideia, o escritor brasileiro Flávio Carneiro, formulou em um artigo[1]:

Grandes detetives são grandes leitores, não só de palavras como também de imagens. A palavra “detetive” vem do inglês detective, derivada da raiz latina tec, que significa “cobrir”. Detectar, portanto, é descobrir, tirar o véu que encobre o mistério, ainda que, retirado o véu, surja não a verdade, mas apenas outros mistérios. Detetive é aquele que está sempre por descobrir alguma coisa, sem cessar. Quando já não descobre, é porque está morto, ou muito infeliz.

Quais outros mistérios podemos descobrir lendo A senhora da casa azul?

Você reparou, por exemplo, na presença do leque? Como ele esconde e revela a própria bisa? Em que momentos ele surge? Por que acha que está ali? Ao final, ele volta nas últimas páginas, porém, ocupa outra função. O que será que muda?

E será que você descobre algum outro mistério escondido nas páginas desse livro? Vamos fazer um exercício? Olhem bem, como um detetive, e só depois volte aqui…

Observou novamente as páginas? Encontrou outros detalhes?

Alguns leitores atribuíram um clima onírico a algumas ilustrações, já que elas ficam numa fronteira entre o real e o fantástico. Você concorda com isso? E, por falar em clima onírico, enquanto o livro estava sendo feito, Everson, que é dono de um gatinho cego, inspiração para a personagem felina da narrativa, fez uma pesquisa sobre os significados de se sonhar com gato cego. E o que ele encontrou tem tudo a ver com a história e o caminho de Georgina em sua jornada de autorreconhecimento e transformações. Acredita-se que esse tipo de sonho pode ter a função de mostrar ao sonhador que ele está de olhos fechados para algo muito importante, tendendo a ignorar ou reprimir sentimentos, mas também pode significar mudanças à vista. Cada um atribui aos sonhos os sentidos que têm mais a ver com sua vida, mas que tais significados têm a ver com a narrativa proposta, isso eles têm!

E lembrando que não são apenas as ilustrações, mas certos detalhes do projeto gráfico que constituem a narrativa, dão algo que nos chama a atenção na dupla de páginas em que Nico abraça a bisa, emocionado pela virada que estaria por se apresentar, quando ela finalmente resolve escolher a cor de sua casa: a costura fica visível, como se as linhas brancas no meio das duas páginas não costurasse apenas o livro, mas a própria vida de Georgina.

Outras referências presentes na ilustração

Você já ouviu falar de um artista chamado Athos Bulcão? Ele é considerado o artista de Brasília, foi assistente do famoso pintor Candido Portinari, e pintou muitos murais em azulejo, que podem ser vistos em diversos edifícios públicos da capital brasileira. Numa das páginas em que acompanhamos a profusão de pensamentos de Georgina, podemos observar várias estampas, de diferentes formas. Muitas delas fazendo referências ao traçado desse grande artista brasileiro. Procure por ele, você vai gostar de encontrar semelhanças dos murais no livro.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

CARNEIRO, Flávio. “O leitor detetive”. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo – v. 5 – n. 2 – p. 164-169 – jul./dez. 2009. Acesso em 20/11/2023.

Fundação Athos Bulcão – https://www.fundathos.org.br/

 

 

[1] Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo – v. 5 – n. 2 – p. 164-169 – jul./dez. 2009. Acesso em 20/11/2023.

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