Ser escritor, hoje
A propósito da Flip de Paraty
Tenho duas profissões, ambas muito bonitas e com um quê de sacerdotal nas duas: escritor e professor.
Assim como o passarinho canta e o sapo coaxa, eu escrevo. Como a ave e o batráquio, sem que ninguém me obrigue, me contrate ou me promova, sigo escrevendo, escrever é da minha natureza. Que outros digam se o sapo coaxa direito, se o passarinho canta afinado ou se eu escrevo como convém.
Para o segundo ofício, todavia, precisei estudar, sim, e muito! Desde a entrada na Faculdade, fui um trabalhador que estuda. O governo denomina de outro modo: estudante que trabalha. Como, se o meu principal ofício é trabalhar para poder estudar?
Digo ?ofícios? e não ?profissões?. No Brasil, a profissão de escritor não é reconhecida. Ele não paga nada para ser escritor. Embora pague muitos impostos, nada recolhe à Previdência. Outros ofícios também nada recolheram e ainda assim se aposentaram pelo que fizeram. Quando escritor é pago pelo que faz, recebe bem menos do que merece, como se fosse a mosca no açucareiro ou, melhor dizendo, de meu ponto de vista, o torrão de açúcar.
Como a profissão de professor, com boas exceções, é muito mal remunerada também, denomino ofício e não profissão a docência, a maravilhosa arte de ensinar aos outros o que eles ainda não sabem ou ajudá-los a descobrir por si mesmos. O livro é a figura solar nos dois ofícios, sem livro nada se aprende. Escrevendo ou ensinando, estamos sempre na companhia de autores e livros, e isso é motivo de felicidade, embora não se deva ter obsessão pelo assunto, afinal a felicidade, como menstruação atrasada, um dia vem. E se não vem o sangue, vem a criança.
Por que haverá algo de sacerdotal nesses dois ofícios? O sagrado está em oposição ao profano. Sagrado era aquilo que era feito dentro do templo. Profano, o que era feito fora.
Escrevo como quem separa o joio do trigo, convicto de que temas e problemas nos trazem o Bem e o Mal, em poções que convém separar, já que também o demoníaco vem misturado ao sagrado, por vezes, desde os tempos primevos da Criação, quando houve tremenda luta entre os exércitos de Lúcifer contra os de Miguel. Se viver é lutar, como escreveu Gonçalves Dias num poema famoso, escrever também é lutar, embora, como disse Drummond, seja ?a luta mais vã?. No Brasil, todo escritor é Sísifo!
Lúcifer, anjo, significa cheio de luz. Miguel, arcanjo, ?como se fosse Deus?. Arcanjo é superior a anjo. Miguel foi promovido por mérito depois daquela guerra.
Não evitava as festas profanas da literatura, mas hoje eu as evito tanto quanto posso. A Festa Literária de Paraty, por exemplo, me parece, acentua o profano em prejuízo do sagrado. Escritores que são referência mundial na literatura não se sairiam bem nesses eventos. Imaginem Cervantes, Camões, Shakespeare, Goethe, Dante etc nessas festas. E não porque sejam de outro tempo, mas porque são (existem) de outro modo. Eles seriam um fracasso de público. E Machado de Assis, então, que era gago!
Vivemos num mundo dominado pela mídia, que abomina o sagrado por não poder controlá-lo. Que outros se jactem do que fazem fora do templo. Quanto a mim, aprecio a solidão da sacristia leiga onde ora escrevo, embalado por músicas clássicas que só podem ser ouvidas em rádios que dão traço de audiência.
Sei que sou muito lido por algumas coisas que escrevo ? como a coluna da Caras, por exemplo ? e pouco pelos romances. O meu romance que vendeu mais, Avante Soldados Para Trás, já publicado também em outros países, e que recebeu o prestigioso Prêmio Internacional Casa de las Américas, com José Saramago presidindo o júri, vendeu apenas nove edições no Brasil, desde que foi publicado em 1992. De onde vêm as palavras, livro que reúne as colunas de etimologia que publico semanalmente na revista Caras, teve sua primeira edição em 1997 e já vendeu o dobro em muito menos tempo. Respeito os leitores: na Galáxia Gutenberg há textos para todos os gostos, tanto vistos da perspectiva de cada autor quanto contemplados por gêneros, línguas, países etc.
Semelhando um passarinho, canto, ou melhor, conto todos os dias. Ele veio cantar em minha janela. Nós dois precisamos ganhar a vida. Ganhamos alguma coisa com nossa arte de cantar e contar?
Quanto ao sapo, o poeta Manuel Bandeira deu a resposta: ?Longe dessa grita/ Lá onde mais densa/ A noite infinita/ Verte a sombra imensa;/Lá, fugindo ao mundo,/ Sem glória, sem fé,/ No perau profundo/ E solitário, é/ Que soluças tu,/ Transido de frio,/ Sapo cururu/ Da beira do rio?.
copyright do autor
* O escritor Deonísio da Silva, Doutor em Letras pela USP, é professor e vice-reitor de pós-graduação e pesquisa da Universidade Estácio de Sá. Seus livros mais recentes são o romance Os Guerreiros do Campo e A Língua Nossa de Cada Dia.
Add Comment