Qual a cor da caixinha do preconceito?
Se você chegou até aqui é porque teve curiosidade em saber mais sobre a Gilbiscleuda e sobre o que ela simboliza. Os livros podem abrir-se para muitas conversas, não é mesmo? Diálogos sobre o jeito como os autores resolveram contar a história, as relações entre o texto e as ilustrações e as narrativas que essas duas linguagens apresentam, e para onde determinado livro levou seus leitores, o que sentiram, pensaram…
Enfim, as histórias, sabemos, também são uma forma de se conversar sobre a vida. Já pensou nisso?
E sobre o que será que podemos falar a partir da leitura de Gilbiscleuda? Por aqui, nós achamos que esse livro pode ser um ponto de partida para uma boa conversa sobre as diferenças entre as pessoas e sobre a necessidade que muitas vezes os grupos costumam ter de “rotular” as pessoas, encaixando-as, querendo controlar seus jeitos de ser, as formas com que decidiram levar a vida. Quando alguém ou um grupo tem muita dificuldade em aceitar diferenças, abre-se um terreno propício ao preconceito.
Talvez Gilbiscleuda possa nos ajudar a conversar sobre tudo isso. Outro assunto presente no livro é a existência de certos tabus em nossa sociedade, ou seja, temas considerados perigosos, e que devem ser proibidos ou disfarçados, não se podendo falar abertamente sobre eles.
Brincando com um tabu, aliás, Everson Bertucci e Juão Vaz criaram uma narrativa sobre o nascimento que hoje até pode ser considerada inusitada, embora não tenha sido sempre assim. Há poucas décadas, falar como nasciam os bebês era um tabu. Nas famílias, e até mesmo nas escolas, não se falava sobre isso com as crianças! Claro que o silêncio ou a proibição não faziam com que a curiosidade infantil cessasse. Imagine se os pequenos não iam querer saber de onde vinham… Está aí um desejo muito humano, o de se conhecer as origens.
Para driblar perguntas que inevitavelmente viriam, foram até criadas algumas lendas contadas às crianças por séculos e séculos, até muito recentemente. Dizer que os bebês vinham das barrigas de suas mães era impensável em certos lugares e grupos até a década de noventa, por exemplo.
Dizia-se que os bebês eram entregues às famílias pelas cegonhas – uma lenda antiga usada para justificar às crianças o surgimento repentino de um bebê na família, pois não se dizia aos pequenos que um novo serzinho era gestado no ventre de sua mãe. Imagine se as crianças não iriam querer saber como o bebezinho havia ido parar ali dentro…
E para justificar o motivo de as mães precisarem de um descanso após a chegada do bebê, dizia-se que elas haviam sido bicadas nas pernas pela cegonha. A lenda surgiu na Escandinávia pelo fato dessa ave ser dócil e protetora, e ganhou o mundo no século XIX pelas obras do escritor Hans Christian Andersen.
Em Gilbiscleuda, a lenda da cegonha trazendo um bebê vem à tona numa sociedade completamente modificada. É muito provável que as crianças de hoje nem saibam dessa lenda, mas é quase certo que seus pais, avós, bisavós vão poder explicar-lhes e relembrar as narrativas que lhes foram contadas sobre as origens da vida.
Aqui, a lenda da cegonha ganha outro lugar, ressaltando as diferenças da menina em relação aos demais. Se as crianças eram trazidas por uma cegonha, de onde elas surgiam? Do ovo? No caso da Gilbiscleuda, sim! É uma personagem tão incomum, por ser uma palhaça de nascença, que só poderia ter nascido de um ovo. E se esse ovo é da cegonha, será que ela é filha da cegonha? Ou esse ovo é de outra ave? Ou talvez… de um dinossauro?! Vai saber…
O que podemos dizer é que Gilbiscleuda é um ser totalmente diferente. E por ser assim, não se sabe o que fazer com ela. Por isso, passam a colocá-la em “caixinhas”. Literalmente, encaixá-la em algum lugar! As caixinhas são representadas por cores. Alguma cor deveria ser a cor “certa” para a Gilbiscleuda… Será? Quando o Everson escreveu o texto, ele estava pensando muito sobre como uma pessoa que nasce diferente é, muitas vezes, vítima de preconceito. Daquele jeito que a pessoa é não se aceita… E aí, sempre tem alguém para dizer que ela deve ser “dessa” ou “daquela” caixinha.
Assim como o autor, muitas crianças passaram ou passam por situações como essas. Situações que vão desde ouvir frases como: “você não deve falar assim”, “você não pode isso ou aquilo”, “você é estranho, esquisito”, “aqui não tem lugar para você”, “você não é bem-vindo aqui”, entre outras tantas, até os casos em que a reprovação vem por meio de gestos ou olhares que expressam julgamentos, chegando até a ocasiões em que se vive uma violência física.
O que se torna muito grave pois formas de violência, verbais ou não, podem aniquilar uma criança que não se “encaixa” ou não se “enquadra” nos padrões. Essa criança pode vir a se fechar, se isolar e se sentir muito sozinha. Everson foi uma dessas crianças numa época em que os pequeninos não tinham voz.
E ele, muitas vezes, ficou nas caixinhas que o colocaram. Por medo, para se proteger, para não causar incômodo, para não causar confusão, ou como forma de defesa e evitar conflitos. Simplesmente, o seu existir era um incômodo. O seu estar no mundo incomodava. Seu corpo, sua voz, seu jeito de andar, seu comportamento. Elementos que ele não tinha como mudar.
Everson não teve a literatura, nem alguém que lhe dissesse ou lhe mostrasse que sua existência não era um problema. Que o problema não era ele e sim quem o considerava um. Então, o livro nasce com o desejo de ser um grito de liberdade. Gilbiscleuda é a criança que Everson, olhando para o seu passado, gostaria de ter sido: uma criança que percebe muito cedo que é sim diferente, mas que entende que isso não é um problema.
Afinal, muitas pessoas são diferentes e podem não se encaixar nos padrões, seja pelo gênero, pela sexualidade, pela etnia, por algum tipo de deficiência, por padrões de beleza, por estilo, enfim, por ser diferente. E o que a sociedade faz com pessoas assim tão diferentes, tão fora do padrão? Tenta tirá-las de circulação, pois não sabe como lidar com alguém assim. Então, o melhor é escondê-las.
Mas o que não esperam é que Gilbiscleuda seja uma criança com autoestima e voz. Ao contrário da criança que o Everson foi, ela diz “não”. E dizer não é impor limites. É se impor às violências explícitas e veladas que socialmente alguém diferente vivencia. Gilbiscleuda não se permite ficar nas caixinhas que acham que ela deve ficar escondida. E é por isso que ela repete o tempo todo a frase “aqui não é meu lugar”.
Como professor, Everson propõe esse diálogo aos seus alunos com o intuito de conversar sobre preconceito por um viés bem humorado e talvez, conscientizador. No fundo, todos nós vivemos em caixinhas. Nossas casas são caixinhas, as escolas são caixinhas, a cidade, o estado e o país onde moramos são caixinhas. E por aí vai…
O tempo todo, transitamos por caixinhas. E quando se é criança, quem escolhe essas caixinhas é o pai, a mãe ou algum responsável. Nossas relações e profissões também são caixinhas. Gilbiscleuda também pode ser uma porta para falarmos sobre a escolha dos nossos relacionamentos na fase adulta. Se vamos querer nos casar, ter filhos, mudar de cidade, de país. Coisas aparentemente simples, mas que não deixam de ser “caixinhas”.
E quando Everson pergunta aos seus alunos se, ao se tornarem adultos vão deixar outras pessoas escolherem suas caixinhas ou se vão querer ser como Gilbiscleuda, ouve em coro que serão como a Gilbiscleuda. Se for para ficar numa caixinha, que seja uma caixinha escolhida por si próprio e não por outra pessoa. O problema não é estar em caixinhas, desde que você queira estar nelas por uma escolha sua.
E você, está nessa caixinha aí por escolha própria ou te jogaram nela e você nem se deu conta?
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