Prefácio – Irmãs da chuva
Por Regina Machado
Você já foi pra Tururu do Sul?
Lá tem relógio parado, galos desregulados, canto em dupla no alto do cruzeiro, rio que não dá mais peixe, cantiga que rima pra todos os santos, sombrinhas de laranjas escaldantes, barra de sabão no telhado, uma sábia madrinha, mais uma porção de valorosa gente sertaneja e… duas heroínas que não vou dizer quem são.
Sei porque estive lá, enquanto acompanhava, sem desgrudar das páginas, o desenrolar da fala mansa e encantada da Gabriela Romeu, encadeando ecos do povo do sertão brasileiro, tintim por tintim, com a graça e o afeto que só ela sabe compor.
Fui sentindo o cheiro da terra molhada, lembrando da boniteza de casinhas miúdas com latas de flores na janela, dos doces de panela, da igrejinha que soberaneia os povoados, do gosto do café coado, dos mistérios da vida simples sacudida pela natureza. Saber de chão, cantos na direção do céu, especiarias e invencionices do povo nosso de cada dia, ainda hoje vivas em vilarejos remotos e em outros nem tanto.
Pelas palavras acesas da Gabriela, fui memorando o gosto da presença deste Brasil encoberto, à beira do risco de sumir na escuridão de nefastos poderes.
Conseguem, não. Passa tempo e temporada, passa boi, passa boiada, e nossa gente permanece maior e mais sonora, com suas reverências e seu conhecer enraizado nas proezas herdadas dos longínquos habitantes de nossas terras. Tudo isso ainda é. E precisa de olhos que possam ver, amorosos e cheios de curiosidade, a pinçar preciosos indícios de humanidade e transformá-los cuidadosamente em poesia eloquente. Ao som dos sinos e das vozes das mulheres e dos cantadores, das violas pungentes. Afinal, o Brasil resiste. As histórias contadas aqui sulcam caminhos dentro dessa resistência, como o varal de roupas coloridas que emoldura cada moradia dos nossos campos, testemunhando a eterna possível integração entre as pessoas, seus fazeres, as paisagens, o ar e a terra, as águas e a seca, o verão e a primavera, o dia e a noite. Em harmonia.
Escutei de um cantador estes versos do poeta popular paraibano Pinto de Monteiro:
“Eu comparo esta vida
À curva da letra S:
Tem uma ponta que sobe
Tem outra ponta que desce
E a volta que dá no meio
Nem todo mundo conhece.”
É dessa linda sabedoria que trata o narrar de Gabriela Romeu, também traçado no bordado inspirado por um S que insinua muitas cadências dessa letra, até a de um S deitado, a do infinito.
Mesmo sem terem me pedido, aconselho que vocês busquem um jardim – se os passarinhos vierem, melhor será –, sentem-se numa cadeira bem confortável com um guarda-chuva ao lado e aventurem- se na leitura deste livro. Se então acontecer algum milagre, qualquer um, está tudo bem: é porque o sertão é mesmo dentro da gente.
Regina Machado é professora doutora e livre-docente da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Narradora oral para crianças e adultos desde 1980, coordenou vários grupos de músicos e contadores de histórias nas últimas décadas. Em 2001, criou o Encontro Internacional de Contadores de Histórias Boca do Céu.
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