Presença de Henriqueta: Maria Luiza Ramos - Editora Peirópolis

Presença de Henriqueta: Maria Luiza Ramos

A elaboração do negativo na poesia de Henriqueta Lisboa
Maria Luiza Ramos

 

O poeta tem diante de si a folha em branco, a caneta ou o lápis, a máquina de escrever. O poeta está só. Entretanto, a sua palavra repercute e instaura o outro – interlocutor que o ouve em silêncio, numa identificação narcísica feita de conivência. E é essa escuta carregada de cumplicidade que estimula a comunicação, desencadeia a linguagem, fazendo com que se introduza na racionalidade da palavra programada o aleatório do dito até então, ou para sempre insuspeitado.

A circunstância da escritura empresta ao eu um nós. E essa ausência/presença vem a ser o suporte de uma negatividade em que a produção literária se torna possível.

Como na circunstância do processo analítico, baseado, inversamente, na presença/ausência de uma escuta solidária e cúmplice, também na escritura essa relação se caracteriza por gerar o que Guillaumin chamou, naquele contexto, de “armadilha para o negativo”.

A palavra negativo, na categoria de substantivo, compreende um múltiplo emprego, não só no plano ético das relações sociais quanto mesmo no estrito campo do discurso psicanalítico, tanto assim que, num livro de vários autores, publicado recentemente em Paris, Le négatif – Figures et modalités, o primeiro capítulo é dedicado ao léxico do negativo, no qual Rosolato retoma as diversas acepções do termo, passando da negação à negatividade, à denegação, ao desmentido, à forclusão, ao inconsciente e ao desconhecido.

Não consta nesse volume nenhum capítulo sobre a negatividade que envolve o processo artístico. Mas o autor salienta que o desconhecido assumido, sendo a fonte de todo o prazer de pensar, é também aquilo que anima toda a curiosidade intelectual, que se encontra tanto na sexualidade – onde existe o gozo pelo desconhecido que é o outro sexo – quanto na jubilação estética2.

Como tradicionalmente se reconhece, essa jubilação estética pressupõe a negação do vivido, por constituir um substituto da vivência:

 

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

são indiferentes.

………………………………………

Penetra surdamente no reino das palavras.3

 

Mas a produção literária, sendo a negação do vivido, é também, por outro lado, a afirmação do não vivido, o testemunho do desconhecido, a atualização da falta.

Se essa é uma observação que abrange a obra literária, independentemente de gênero ou estilo, é a poesia, entretanto, que melhor exerce essa função de demanda, pelo fato de o jogo do significante ser, por excelência, o lugar por onde flui o desejo.

Contradição que põe em causa o afeto e a reflexão, o poema é o resgate da palavra subtraída, instituindo aquele terceiro tempo da denegação, que confirma o mecanismo defensivo pela suspensão do recalcado:

 

Ouve! O silêncio vai falar!

Mas não falou… Foi-se o momento…4

 

Se o momento passou sem que o silêncio falasse, neste outro momento – o da escritura – é aquele silêncio mesmo que, à revelia, está falando.

Ou então, “Eu ia dizer sim, disse não” (p. 257), verso que contém não apenas a constatação de um fato, mas a retomada desse sim, aqui e agora enunciado.

Do mesmo modo, nestes outros versos:

 

Um nome pode dizer tudo

se teus lábios o calam, (p. 480)

 

é o não calar, que caracteriza a escritura, que aí está enunciando o possível nome denegado.

Esses versos assinalam três momentos na poesia de Henriqueta Lisboa

O primeiro foi extraído do primeiro poema de Enternecimento, livro de estreia da poetisa, publicado em 1929; o segundo é de Azul profundo, publicado quase trinta anos depois; e o terceiro é de Miradouro, de 1976, passados quase vinte anos após o outro.

Por certo, essa obra poética, que se estende por cerca de cinquenta anos, apresenta uma evolução, como, aliás, tem sido apontado pelos estudiosos que dela se têm ocupado.

Trata-se de uma evolução que se processa em vários níveis, através de ideais estéticos determinados; do desenvolvimento de recursos técnicos sofisticadamente elaborados, expressos não só pela prática poética em si mesma, mas em profissões de fé contidas em metapoemas e na metalinguagem das reflexões em prosa; evolução manifestada ainda pelo direcionamento do particular ao coletivo, onde o social é vivenciado pelo prisma dos valores estabelecidos, ameaçados e mesmo em derrocada no progresso massificador:

 

Cega surda e muda a criatura

não mais reconhece o mundo

……………………………………..

O sentido da vida está por um fio. (p. 518)

 

Reverenciam-se em verso as lendárias cidades italianas – reduto da cultura artística universal – e celebra-se a tradição das Minas Gerais, nas suas instituições e nas suas figuras históricas.

Mas nessa evolução existe algo que resiste, insiste, permanece: a elaboração do negativo, sob vária modalidade.

No prefácio à Poesia geral, primeiro volume das Obras completas, Fábio Lucas observa:

 

Desconhecemos poeta que tantas vezes tenha iniciado seus poemas com a negativa “não”

 

e menciona a seguir o

 

processo das negativas encadeadas, em ritmo intensificador, a se chocarem com uma proposição final, opositiva5.

 

Gostaria de acrescentar a observação de que essa proposição final só é opositiva do ponto de vista sintático, uma vez que ela introduz, frequentemente, algo ainda mais negativo do que aquilo que fora antes negado:

 

Não o rumor de insetos contra os vidros do ar,

nem o dos talos da planta crescendo.

Nem mesmo a bulha mínima

de rocio a escorrer em pétalas.

Mas leve aragem da mudez que precede

ao balbucio do pensamento.

 

Esse mesmo processo estrutura as três estrofes de “A face lívida”, poema que deve ser transcrito na íntegra:

 

Não a face dos mortos.

Nem a face

dos que não coram

aos açoites

da vida.

Porém a face

lívida

dos que resistem

pelo espanto.

 

Não a face da madrugada

na exaustão

dos soluços.

Mas a face do lago

sem reflexos

quando as águas

entranha.

 

Não a face da estátua

fria de lua e zéfiro.

Mas a face do círio

que se consome

lívida

no ardor. (p. 105)

 

A melancolia, manifestação de perda, de uma ausência muitas vezes indefinida, é outra constante, desde os primeiros versos. Um eco da temática simbolista – poder-se-ia dizer – mas com a particularidade de a nostalgia, quando definida no seu objeto, referir-se não a uma lembrança feliz, mas a uma recordação dolorosa:

 

Sobe do vale um soluço

que desde sempre conheço.

Com que nostalgia o escuto

por entre as fontes e o vento! (p. 263)

 

A nostalgia não é, pois, provocada pela privação do prazer, mas há um prazer intrínseco à nostalgia, nostalgia da ausência, de tal forma reafirmada, que não mais se distingue se se trata da ausência de alguma coisa, ou da ausência em si, objeto de nostalgia.

A morte, radicalizando a ausência, é o motivo mais trabalhado na poesia de Henriqueta Lisboa, tendo inspirado o título de dois de seus mais celebrados livros, A face lívida e Flor da morte, o primeiro dedicado à memória de Mário de Andrade.

Mas a morte já rondava a poesia de Henriqueta Lisboa desde muito antes, na serenidade dos versos que evocam o ausente, aquele que “à mesa preside”, ausência/presença no seio da família (p. 62).

Se a nostalgia remete ao passado, a morte é também apelo ao futuro. Mais do que nunca, a sedução do desconhecido torna-se a matriz semântica dessa poesia, em que o convívio com a morte se confunde logo com o culto da morte. Mas esse não é um culto ao metafísico, quase sempre inerente a essa temática.

Se aqui se lê:

 

Quero sombra

sem matéria,

sombra de Deus,

de Deus,

para este sono

primevo (p. 126),

 

adiante já se encontra:

 

Não vos aproximeis, viajantes!

Guardai apenas a visão.

 

Rincão de paz antes inóspito,

ilha de sombra depois da morte. (p. 139)

 

Do mesmo modo, num outro poema, sugestivamente intitulado “Sofrimento”, se são celebrados os valores essenciais,

 

Ficou o espírito, mais livre

que o corpo (p. 175),

 

ao final, é a efemeridade dos valores existenciais o que prevalece:

 

O que se perdeu foi pouco.

 

Mas era o que eu mais amava.

 

O culto da morte situa-se além, ou aquém do espírito, explorando, por exemplo, com realismo, o espetáculo da agonia:

 

A voz por um fio

desnuda

na palavra sem gesto.

…………………………….

Na imensidade sem pouso,

olhos duros

de pássaro. (p. 142)

 

 

Henriqueta Lisboa defendeu princípios estéticos do simbolismo, mesmo depois de incursionar por outros padrões literários, como chegou quase a admitir em sua conferência, já aqui lembrada, “Poesia: minha profissão de fé”:

 

… a poesia reside entre o escuro e o revelado, a palavra e o silêncio. Fecundo silêncio expressivo como a palavra mesma, a limitá-la e a prolongá-la em fluidez psicológica, aureolando-a, esfumando-lhe a densidade, protegendo-a da claridade crua. (grifos adicionados)

 

Mas é com uma crua claridade que a poetisa nos fala da “boca descarnada”, da

 

boca semiaberta

na inconsciente procura

de não morrer ainda (p. 153),

 

ou quando registra que “a morte é limpa”, “com seus aventais de linho” (p. 176), “lâmina de aço nos pulsos” (p. 152),

 

… morte

violenta,

árdua morte

de asfixia

veneno letal

fatal

quase que puro

suicídio. (p. 150)

 

É ainda o autoextermínio que retorna mais tarde, de uma maneira tão violenta que a metáfora da rosa só faz intensificar:

 

Em plena festa para o brinde

com uma coroa de estilhaços

rompe a rosa no asfalto.

…………………………………..

Agora repousa a cabeça

corola triste entre a ramagem

dura dos quatro membros. (p. 333-334)

 

Nesse mesmo clima finaliza o poema seguinte – “Elegia menor”:

 

Depois, apenas esse dúbio

odor de flores entre moscas. (p. 335)

 

Mas não é só o cadáver que fascina. Também comparece aí o mutilado, com

 

– perna que jaz apodrecida

do outro lado do oceano –

 

mutilado a quem dirige a pergunta:

 

acaso não te sentes premido

pela nostalgia das valas

onde – parcela de retardatário –

sufocadamente lateja

o teu monturo de carne

à espera de completação?… (p. 249)

 

A relação com a morte assume, pois, um caráter perverso, já antecipado com extrema delicadeza quando a poetisa a invoca e a ela amorosamente se entrega: “Vem, doce morte. Quando queiras” (p. 178), e, depois de repetir por várias estrofes esse mesmo verso, finaliza:

 

Tenho o corpo tão leve (quando queiras)

que a teu primeiro sopro cederei distraída

como um pensamento cortado

pela visão da lua

em que acaso – mais alto – refloresça.

 

Além do mutilado, o cego, o surdo e o louco habitam a poesia de Henriqueta Lisboa. Quanto a este, o louco, que aparece em poemas diversos, assume um valor arquetípico ao se apresentar, por exemplo, na figura de Tiradentes, “por entre abismos levita o louco” (p. 222), ou como o louco propriamente dito:

 

Pelos ares, que elfo

comandaria o louco

………………………..

transformando em frouxéis

os pedrouços da escarpa?

 

Porque o louco levita…

………………………..

 

Que áspero demônio

para tatuar-lhe o corpo

doado às cabalas, nos seus torvos

e drásticos alaridos?

 

Porque o louco é sagrado… (p. 251-252)

 

Uma outra versão do louco é o bobo, que inspira dois poemas, um intitulado “O idiota”, outro, “O excepcional”, o qual

 

caminha sem pejo, desnudo

incógnito isento incônscio

do bem e do mal. Sua cabeça

gira-girando aos horizontes

…………………………….. – indicia

mas ignora o perigo. (p. 489)

 

Ora, Le Fou, ou Le Mat (o louco, ou o bobo), a primeira carta do jogo do tarô, representa igualmente um jovem com pouca roupa, andando descuidado à beira de um abismo, a cabeça inteiramente voltada para trás. Simboliza o espírito puro, ou o puro de espírito, o que se lança ao desconhecido, o que se afasta do leirão das estradas, aquele, portanto, que delira. Mas esse delírio não é necessariamente negativo. Pelo contrário: ele é a força que sustenta a criação artística, as descobertas científicas, a busca do novo. E o Bobo não é também o simples débil mental, mas o Bobo da Corte, por exemplo, que pode ser mais ladino do que todos os que o cercam, ou a genial figura do Carlitos, personagem suspensa entre o escárnio e a glória. De qualquer forma, o Louco, ou o Bobo, estão sempre andando, sempre em movimento, buscando, como o gauche de Drummond, a quem vaticina o Anjo Torto: “Vai, Carlos, ser gauche na vida”7.

O valor arquetípico pode ter-se manifestado na poesia de Henriqueta Lisboa de modo espontâneo, é claro, já que se trata do inconsciente coletivo, mas pode também ter sido motivado por uma certa familiaridade com que a poetisa lida com um vocabulário esotérico em que, além das cabalas, figuram palavras como alquimia, arcano, oráculo – que é, aliás, título de um poema –, tudo dentro do campo semântico do desconhecido, que, como vimos de início, constitui uma das modalidades da elaboração do negativo na sua obra poética.

A privação, seja de uma parte do corpo, de um dos sentidos, da razão, ou mesmo da vida, ratifica a tônica da ausência, que vimos observando, da nostalgia do vazio, de um distanciamento e de um estranhamento que não se dá apenas no âmbito do humano, mas se projeta também na percepção das coisas.

Mesmo antes da publicação de Miradouro, que reúne poemas de 1968 a 1974 e traz uma epígrafe de Plotino – “O que em mim contempla produz o objeto de contemplar” –, já se encontra essa preocupação, que se estende a Pousada do ser:

 

Recrio o visível

a meu desejo

com particulares matizes.

Invento o visível

de acordo com meus próprios olhos

para que através de cotejo

a novos prismas

outros olhos o vejam. (p. 536)

 

Mas onde mais flagrantemente se mostram os efeitos desse estranhamento, que não decorre apenas de uma atitude natural do artista em contato com o mundo que o cerca, mas é intencionalmente cultivado, é no uso da linguagem, em que as palavras se encontram

 

umas prontas para o jogo

outras intactas à sorte. (p. 515)

 

Nunca o dicionário foi tão manuseado e prestigiado, a ponto de o jogo se sobrepor, por vezes, à poesia. É uma festa de alaúdes, volutas voláteis, decibéis, magnólias, áspides e vergéis, Aleutas, dalas, adejos e galeios, e tantas outras palavras melífluas, que impulsionam o discurso num encadeamento musical. Verifica-se, pois, uma radical primazia do significante, de caráter predominantemente lúdico.

O encadeamento metonímico não é resgatado pelo choque metafórico, ou seja, a costura do texto projeta-se de modo linear, sempre para diante, ao embalo articulatório, sem que se dê o ponto-atrás, característico do trabalho de estofamento.

Entretanto, a primazia do significante – como colocou Jacques Lacan – só não é estéril quando a cadeia metonímica provoca o curto-circuito, no qual o significado barrado explode em metáfora, à revelia.

O jogo do significante não se confunde com o culto do significante. As suas artimanhas independem, por princípio, de uma postura intencional. Pelo contrário, voltam-se contra qualquer intenção. É o caso do lapso, por exemplo, tal como se dá no poema “Lamento do soldado morto”:

 

Sob o lajedo entre flores

de matizes ardentes

numa esfera de sonho

fora do tempo jaz meu corpo. (p. 489)

 

A enunciação em primeira pessoa é um recurso retórico que intensifica a comunicação. É o morto quem fala, do seu lugar “sob o lajedo”, “entre as neblinas de âmbar do subsolo”, de onde vê os visitantes que passeiam:

 

Uns contemplam as letras

de certo nome sob a minha lápide.

(grifo adicionado)

 

Mas que nome será esse, que não se encontra sobre a lápide do morto, de modo a poder ser lido pelos visitantes, mas está, pelo contrário, sob ela, debaixo da pedra, com ele sepultado? E por que a indefinição de “certo nome”, em vez de nome, simplesmente, o nome que deveria ser o desse morto, que indefine ainda o lugar da sua fala, na medida em que diz: “A morte nivelou-me aos mortos”, e adiante:

 

Estou só de solidão absoluta

à feição de um morto qualquer.

                        (grifo adicionado)

 

A enunciação em primeira pessoa já não mais se caracteriza aí como recurso retórico apenas, mas sim como projeção, denunciada pelo jogo do significante, que faz com que se sobreponha o sob ao sobre, à revelia da escritura, condensando assim o sujeito com o objeto do discurso. Tal condensação se mostra também de outro modo, nos versos finais do poema:

 

Um minuto! E eu pudera ter libado

naquela mesma tarde em pomar italiano

as primícias de um fruto níveo-rosa

que entre sorrisos namorados pendia

quase maduro de desejo.

 

Elabora-se aí o mesmo corte – vindo de fora ou de dentro do sujeito, não importa –, mas o corte, sempre, do fluxo da emoção, o mesmo que se encontra nos versos que mencionei de início:

 

Um nome pode dizer tudo

se teus lábios o calam.

 

Gostaria de desenvolver outros aspectos da obra de Henriqueta Lisboa, como, por exemplo, o seu cuidado em pesquisar o fato histórico elegido como motivo de poesia, tal pude detectar num trabalho, já de muitos anos, em que estudei comparativamente poemas de Madrinha lua e de Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, livros publicados quase que simultaneamente8.

Em ambos os poemas inspirados em Tiradentes, encontrei a mesma metáfora:

 

Sinos de cristal ardente

acordarão a distância

com os fios desse enredo

para daqui a cem anos (H.L.),

 

enquanto no Romanceiro:

 

Que importa, se o prendem?

A teia que tece

talvez em cem anos

não se desenrede! (C.M.)

 

Pesquisando, encontrei que as duas poetisas tinham ido aos “Autos e devassas”, documento onde se registraram palavras do próprio Tiradentes: “Hei de armar uma meada, que em cem anos se não há de desembaraçar”.

Mas esse caminho não só me afastaria do tema que me propus analisar na obra de Henriqueta Lisboa como também alongaria este trabalho.

Queria acrescentar, entretanto, mais duas palavras. A primeira, para lembrar que, de uma perspectiva literária, o esvaziamento do verso em função da sedução exercida pela cadeia significante, a que ainda há pouco me referi, acarreta um efeito negativo, no sentido mesmo pejorativo do termo. Perde-se, por vezes, o interesse pela leitura, pelo fato de tornar-se o jogo muito evidente. E essa é, como vimos, uma armadilha aos poetas, em geral, que dela às vezes se dão conta, como no caso de Drummond, que assim interrompe um poema:

 

minha pena deserta, ao fim de março,

amor, quem contaria?

E já não sei se é jogo, ou se poesia.9

 

Mas, se Henriqueta Lisboa, que tinha um admirável domínio do fazer literário, deixava-se seguir ao fluxo do significante, sem se dar conta de que, com isso, a poesia desertava de sua pena, é que o esvaziamento da palavra correspondia ao fascínio que o vazio exercia sobre a sua escritura. O vazio no seu sentido mais pleno. A ausência. O desconhecido. A falta. A denegação. A negatividade, tal como foi admiravelmente representada, por exemplo, neste poema:

 

Ó Noite, ensina-me

o teu magno

segredo:

iluminar da sombra.

Da sombra permitir

a visão mais profunda. (p. 245)

 

Todas essas nuanças do negativo nos legaram, entretanto, uma obra poética das mais positivas na literatura nacional, pois Henriqueta conheceu o segredo da Noite.

Quanto ao que na sua poesia existe de negativo – como valor literário – é coisa de somenos. Como disse ela no último poema de sua Poesia geral, o primeiro volume das Obras completas,

 

“o moinho mói os satélites

e deixa o diamante intacto” (p. 543)

 

A segunda palavra é para cumprimentar a Faculdade de Letras da UFMG, bem como a Associação Brasileira de Literatura Comparada, particularmente a comissão organizadora desta semana de estudos, professores, mas antes de tudo meus queridos colegas Melânia, Abigail, Eneida, Nádia e Wander, pelo sucesso deste evento, não só quanto às programações crítica e artística, mas pela bela exposição, que vem a ser um texto iconográfico digno de estudo especial.

E, finalizando, permito-me ainda uma terceira palavra. Quero dizer o quanto me emocionei ao deparar com o retrato de Mário de Andrade – retrato desnudo, exposto à visitação pública – por ter me lembrado do dia longínquo em que Henriqueta, distinguindo-me com a sua amizade e confiança, introduziu-me no recinto sagrado da sua intimidade, levando-me até uma pequena mesa, em seu quarto, sobre a qual havia algo encoberto por um delicado pano bordado. Levantou-o com ambas as mãos, num gesto de ritual, para que eu visse o retrato, lendo ela mesma a dedicatória, como se as palavras se maculassem ao contato de lábios alheios. Foi então que me falou, comovida, das cartas que ele lhe escrevera, as quais deveriam ser publicadas vários anos após a sua morte.

Relato esse episódio porque, se até agora falei da poetisa Henriqueta Lisboa, focalizando a sua obra poética pela perspectiva da elaboração do negativo, creio ser de interesse testemunhar, de modo ainda mais humano, a mulher Henriqueta, contraponteando os véus da sua poesia – seu primeiro livro intitula-se Velário – com a cambraia branca sobre o rosto do Amado.

 

1 GUILLAUMIN, Jean. Étrange espèce d’espace ou la pensée du négatif dans le champ de la psychanalyse. In: MISSENARD, A. et al. Le négatif – Figures et modalités. Paris: Dunod, 1989. p. 29.

2 ROSOLATO, Guy. Le négatif et son lexique. In: Le négatif – Figures et modalités.  p. 21.

3 ANDRADE, Carlos Drummond de. “Procura da poesia”. In: _____. Antologia poética. 52. ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1970. p. 196-197.

4 LISBOA, Henriqueta. Obras completas – Poesia geral. v. 1. São Paulo: Duas Cidades, 1985. p. 21.

5 LUCAS, Fábio. A poesia de Henriqueta Lisboa. In:  Obras completas – Poesia geral. v. 1. São Paulo: Duas Cidades, 1985. p. 10.

6 LISBOA, Henriqueta. Vivência poética. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1979.

7 ANDRADE, Carlos Drummond de. “Poema de sete faces”. In: Op. cit., p. 9.

8 RAMOS, Maria Luiza. Aspectos do “Romanceiro da Inconfidência”; Tendência (Belo Horizonte), n. 3, 1960.

9 ANDRADE, Carlos Drummond de. “Elegia”. In: Op. cit., p. 264.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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