Presença de Henriqueta: Antônio Sérgio Bueno
A necessidade do supérfluo
Antônio Sérgio Bueno
O conceito de poesia que Henriqueta Lisboa esboça em Vivência poética aplica-se integralmente a seu próprio texto. Diz ela: “Não ouso definir especificamente a poesia, embora tenha aventado que ela seria a coação do eterno dentro do efêmero. Sinto-a como a aura que se irradia do ser”1. (grifos nossos)
No coração do Modernismo, estilo artístico basicamente dessacralizador, Henriqueta Lisboa constrói uma obra que restaura todo o brilho da aura, essa espécie de lume que unge todo o seu texto.
Para Walter Benjamin, “observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho”2. O olhar de Henriqueta Lisboa nem sempre é repousado, mas sempre reconhece o sentido misterioso que se oculta nas coisas. E, se a unicidade é o traço definidor da própria aura, a aventura poética de Henriqueta Lisboa é fruto de uma determinação intransferível.
Recentemente, ouvindo Gerd Bornheim falar da crise contemporânea dos fundamentos da cultura ocidental, lembrei-me de Henriqueta Lisboa. Dizia aquele que a arte do passado era religiosa, que depois do Barroco essa religiosidade desapareceu da arte ocidental. E chamava a arte do passado de total, marcada pelos universais, vivenciada a partir de uma garantia divina. Apesar de reconhecer a dimensão religiosa da poesia de Henriqueta, penso que a aura que a envolve aponta antes para a sacralização da própria arte e do artista, configurando uma espécie de teologia da poesia.
Depois, de manhã bem cedo
ir à igreja das Mercês,
das Mercês e dos Perdões,
ficar ajoelhada no adro
na contemplação feliz
das volutas e dos frisos
e, embora sem ter rezado,
voltar para casa leve,
coração de passarinho
navegando com delícia
os rios de ar da montanha.
[“Poesia de Ouro Preto” (Madrinha lua), grifos nossos]
Não é por acaso que Vivência poética, um dos livros de ensaios de Henriqueta Lisboa, inicia-se com um depoimento sobre sua própria poesia com o título “Profissão de fé”.
Mas Bornheim dizia que a totalidade da experiência artística de nosso tempo é arte pura, poesia pura. Essa totalidade começa a mover-se e a fragmentar-se em detalhes mais ou menos reveladores. Fica a nostalgia do continuum, e a poesia toma o caminho do exílio. Cada poeta passa a ser o exílio de si mesmo.
Henriqueta Lisboa conheceu em sua própria biografia pessoal um simulacro daquela forte totalidade que se perdeu com o advento do individualismo burguês: a casa de pedra. Henriqueta habitou essa casa em um tempo em que seus poemas eram ainda apenas um brilho nos seus olhos. Essa casa era o universo ordenado e hierarquizado de sua família. Mas esse centramento foi rompido pela morte, brandindo de súbito sua foice. Restou-lhe tentar restaurar o aconchego da concha pela memória, em primeira instância, e pela linguagem, em última. Sua escrita ergue sua casa de pedra definitiva, indestrutível. Casa de pedra, a edificação de uma escrita. Mas só agora, terminando o exílio de Henriqueta Lisboa neste mundo, podemos contemplar o que ficou sendo essa casa de pedra. Nem mesmo em Pousada do ser sua arquitetura completou-se. Como disse Donaldo Schüler: “pousada e casa não são o mesmo. A casa mostra o estável, pousada desperta a inquietação da jornada”3. O exílio caminha para o fim, mas ainda caminhava…
Este é um planeta de palavras
neutras movíveis e versáteis
que de rodízio pela ponte
vão ter à margem oposta
…………………………………..
Mantêm auras de mistério
nos percursos de ida e volta
conforme o sangue que as gera
o incentivo que as abrasa…
Conhecendo essa natureza movente da palavra, Henriqueta a aguarda justamente na margem onde ela parecia não ir e aí a surpreende. É o que acontece no jogo irônico entre “essencial” e “supérfluo” contido no poema a seguir:
Do supérfluo
Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.
O esboço tão somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro.
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.
No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr do sol
à hora em que o amor se foi?
Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas – todavia supérfluas –
do meu intransferível patrimônio?
Uma das tensões básicas do texto é a passagem da condição de signo para a de símbolo que se opera nos “supérfluos” enumerados. Só funciona como signo um objeto culturalizado, socializado. É o domínio do nós e o poeta fala de “nossa vida” (grifo nosso) no segundo verso. Para Cirlot, o símbolo é a identificação de um arqhé, uma categoria espiritual matricial que lembra o mundo platônico das ideias4. Per visibilia ad invisibilia, disse São Paulo aos romanos. Não acho que estarei extrapolando muito ao surpreender reminiscências platônicas nesta citação: “… O crepúsculo / acaso visto num país / que não sendo da terra / evoca apenas a lembrança / de outra lembrança mais longínqua”. Conhecer é lembrar, reconhecer. O poeta realiza o percurso do sensível (perecível) para o inteligível (imperecível).
A aguda consciência de solidão do poeta leva-o ao tratamento irônico impresso no texto. A ironia é uma das “impurezas” – ao lado das ideias, dos fatos e do próprio metro – inventariadas por Robert Penn Warren, que distorcem a música da poesia pura. O próprio título do poema transcrito é irônico. O “supérfluo” é essencial para o poeta e a poesia é um inutensílio indispensável. “Do supérfluo” é uma forma oblíqua de transferir alguns preciosos bens do “intransferível patrimônio”, compartilhando o incompartilhável no dizer de Carmelo Virgillo.
E, afinal, a identidade entre o supérfluo e o essencial no poema apenas mostra que não há supérfluo nenhum. João Cabral de Melo Neto dizia que Le Corbusier lhe passara “a impressão de que a arte era construção porque ele era arquiteto, que arte não devia ter o supérfluo”. Esse poema, assim como toda a obra de Henriqueta Lisboa, nada tem de verdadeiramente supérfluo. É puro cristal a reverberar sua luz no tempo.
1 LISBOA, Henriqueta. Vivência poética. Belo Horizonte: São Vicente, 1979. p. 12.
2 BENJAMIN, Walter, Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 170.
3 SUPLEMENTO LITERÁRIO DO MINAS GERAIS. Edição especial sobre Henriqueta Lisboa, 21 jul. 1984.
4 CIRLOT, Juan Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Moraes, 1984.
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