Presença de Henriqueta: Ângela Vaz Leão
Henriqueta Lisboa, leitora e tradutora de Dante
Ângela Vaz Leão
Minha participação na Semana Henriqueta Lisboa se deve antes de tudo, estou certa, à gentileza da comissão organizadora, encabeçada por três colegas e amigas: Melânia Silva Aguiar, diretora da Faculdade de Letras da UFMG; Abigail de Oliveira Carvalho, curadora do espólio literário e cultural de Henriqueta Lisboa; e Eneida Maria de Souza, presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada. A elas o meu agradecimento, que se estende aos outros membros da comissão organizadora.
Em segundo lugar, talvez também se deva a minha participação, pelo menos é o que suponho, ao fato de saberem as colegas que, durante certa fase de minha vida profissional, estive muito ligada a Henriqueta Lisboa. Foi, porém, um contato intermitente, ou melhor, foram três períodos de aproximação intelectual e eventual cooperação. O pri- meiro deu-se nos tempos longínquos em que eu, ainda estudante de letras, mas já professora do Colégio Isabela Hendrix, ministrei um curso sobre a sua poesia e criei, com os alunos dos cursos então chamados clássico e científico, uma biblioteca de literatura brasileira que se denominou precisamente Biblioteca Henriqueta Lisboa. O segundo veio um pouco mais tarde, quando a substituí durante um ano, por solicitação sua, nas aulas de história geral da literatura do curso de biblioteconomia do Instituto Nacional do Livro (INL). E ocorreu o terceiro quando, já transformado esse curso na atual Escola de Biblioteconomia, e transferido do INL para a UFMG, assumi a mesma disciplina (de que ela se exonerara), após ter-me submetido a concurso público perante banca examinadora presidida por ela mesma. Foram contatos em que o conhecimento da pessoa só fez crescer em mim o respeito e a admiração que já nutria pela obra de Henriqueta Lisboa.
Não posso deixar de lamentar o momento em que os encargos administrativos dentro da UFMG mudaram os rumos de minha atividade intelectual. Afastei-me da Escola de Biblioteconomia, onde ministrava modestamente, porém com enorme prazer, as aulas de história geral da literatura. Também abandonei a literatura francesa, que ensinava em mais de uma instituição, forçada que fui por uma participação ativa na reforma universitária e, principalmente, na instalação e estruturação da Faculdade de Letras. Foi isso na virada de 1968 para 1969. Passei a ser absorvida por tarefas universitárias que hoje me parecem apenas ancilares. Já não tinha tempo sequer para cultivar a boa conversa, quanto mais a literatura. O tempo me mostrou que perdi na troca. Perdi o contato com Henriqueta. Perdi a convivência com a poesia.
Por esse motivo, ao receber o convite para participar desta semana na sua sessão de abertura, “Memória de Henriqueta Lisboa”, não achei justo que tomasse o tempo e o lugar de outros que tiveram o privilégio de conviver de perto com Henriqueta nos seus últimos vinte anos de vida, como ocorreu com Ana Elisa Gregori, sua sobrinha e discípula, Yeda Prates Bernis, sua filha espiritual e amiga das horas derradeiras, e Fábio Lucas, seu crítico de muitos trabalhos e fiel correspondente. Só a eles cabia, no meu entender, a abertura dos trabalhos.
Eis-me, portanto, a participar desta mesma semana, porém numa outra sessão de estudos. O tema geral se intitula “Leitura e tradução” e veio ao encontro de um desejo meu: falar de Henriqueta como leitora e tradutora de Dante. Esse é, pois, o objetivo da comunicação que, depois de um depoimento pessoal, passo a fazer.
Se tomarmos o termo “tradução” em seu sentido lato, no sentido de “interpretação”, o título do tema de hoje parece pleonástico. Não há tradução que não seja uma leitura, como não há leitura verdadeira que não seja uma tradução. Em outras palavras, leitura e tradução se confundem, quando se lhes dilata o sentido. O mesmo já não ocorre se tomarmos o termo “tradução” em sentido estrito, isto é, como “transposição de um texto de uma língua para outra”.
Essa forma de tradução, tradução propriamente dita, Henriqueta Lisboa a praticou com competência rara. Nela investiu o seu domínio de algumas línguas, o seu poder de ler nas linhas e entrelinhas, a sua sensibilidade poética, o seu compromisso com o ato de criar.
Apesar disso, a atividade de tradutora de Henriqueta Lisboa não tem tido o destaque que merece. O padre Lauro Palú, um dos estudiosos da obra de Henriqueta, inicia o seu curto prefácio para a coletânea de ensaios Vivência poéticacom a seguinte frase: “Há três caminhos para conhecer Henriqueta Lisboa”. Segundo ele, esses caminhos são a poesia, os ensaios e os ensaios autoexegéticos. Entre estes últimos, destaca-se o depoimento inicial de Vivência poética, intitulado: “Poesia: minha profissão de fé”. Após pequenos parágrafos dedicados a esses três caminhos, o padre Palú fecha o prefácio como o começara, ampliando, porém, com o verbo “amar”, a oração reduzida de infinitivo: “Três caminhos para conhecer e amar Henriqueta Lisboa”1.
Não há referência aí a um quarto caminho possível – o da tradução. Mas a falta, ao que parece, pode explicar-se: a tradução estaria implícita na poesia, pois quem traduz poesia, na realidade faz poesia. O primeiro caminho apontado pelo padre Palú, o da poesia, incluiria, pois, também as traduções poéticas feitas por Henriqueta Lisboa.
Passemos, porém, ao próprio ensaio de Henriqueta Lisboa, “Poesia: minha profissão de fé”. Trata-se, originariamente, de conferência proferida em Brasília, a convite da Fundação Cultural do Distrito Federal, ao ensejo do XII Encontro Nacional de Escritores, em abril de 1978. Nesse trabalho, que o padre Lauro Palú classifica, como já vimos, entre os denominados “ensaios autoexegéticos”, Henriqueta Lisboa estuda a própria poesia. Numa primeira parte expõe, em teoria, o seu ideário poético, isto é, suas convicções a respeito da criação poética, da palavra, do ritmo, da musicalidade, da rima, da imagem, do motivo, da representação. Numa segunda parte, trata concretamente da própria obra, comentando os temas recorrentes e situando de forma crítica cada um de seus livros de poesia, desde Velário até Reverberações. Pois bem. Também aí não há a mais leve alusão a traduções, ou melhor, ao trabalho da criação poética que realizou em suas traduções.
Por que motivo estariam as traduções ausentes da autoanálise de Henriqueta, em tão importante texto metapoético? Consideraria a tradução como um trabalho menor? Ou não veria nela um trabalho de criação, pelo simples fato de as ideias pertencerem ao autor do texto original? Impossível encontrar, até agora, a resposta de Henriqueta a essas perguntas.
Tratemos nós, então, de refletir sobre as implicações que elas contêm, ou, mais explicitamente, tentemos situar o ato de traduzir em relação à criação poética. Para fazê-lo, sugiro que peçamos ajuda a três grandes escritores: um brasileiro dos nossos dias e dois franceses velhos de alguns séculos.
O brasileiro de hoje é Millôr Fernandes, que, com a intenção de prefaciar a sua própria tradução do Hamlet, diz:
É evidente que traduzir o Hamlet é mais difícil do que escrever o Hamlet. Fique claro que não quero dizer mais importante. Mas reescrever a peça – a mesma peça numa outra língua, 384 anos depois – é como escrever amarrado, segurando a caneta com a boca ou batendo na máquina com a ponta do nariz.?
A tradução não é, pois, um trabalho menor. Pela sua função, quando cumprida, e pela sua dificuldade inerente, quando vencida, eleva-se a tradução, em princípio, ao mesmo nível da obra original. Em princípio, disse eu. Porque, na prática, tanto pode não atingir o nível do original quanto pode ultrapassá-lo. É conhecida a blague de um humorista norte-americano, segundo o qual haveria dois escritores chamados Edgar Allan Poe: um, norte-americano, razoavelmente medíocre; e outro, francês, genial – o Poe traduzido e regenerado por Baudelaire e Mallarmé3.
Os franceses de outrora são Buffon e Pascal, dos séculos XVIII e XVII respectivamente.
Buffon, ao ser recebido na Academia Francesa, profere o célebre “Discours sur le style”, de onde se tem retirado e deturpado a frase “Le style est l’homme même“4. Citada assim, fora do contexto, tem sido levada a significar que o estilo reflete o caráter, revela o temperamento do autor. Reintegrada no contexto, porém, significa que o estilo permite ao autor imprimir sua marca pessoal ao pensamento, ou, ainda, que o estilo pertence ao autor, enquanto o resto pode vir-lhe de fora. O pensamento pode, pois, ser um só. Mas, exprimindo-o com seus estilos pessoais, dois autores lhe imprimirão marcas pessoais.
Não é diferente o que se lê em Pascal, numa verdadeira teoria do estilo, que se acha disseminada nos Pensamentos. Imitar um modelo, pensa Pascal (ou traduzir uma obra, diríamos nós), não implica falta de originalidade. Em outras palavras, a originalidade fica por conta do estilo: essa é a ideia que se esclarece através do exemplo do jeu de paume: “quand on joue à la paume, c’est une même balle dont joue l’un et l’autre, mais l’un la place le mieux”5. Poderíamos traduzir o francês de Pascal para o português do Brasil de hoje – lugar e época em que não se conhece o “jeu de paume”, mas onde o futebol é familiar a todo o povo. E a tradução, para ser bem inteligível a um brasileiro de hoje, poderia talvez ficar assim: “quando se joga futebol, é a mesma bola que os jogadores utilizam, mas um a coloca melhor que o outro”, ou, em outras palavras, cada um a coloca a seu jeito.
Da mesma forma, quando se traduz, ainda que se queira transpor o mesmo conteúdo (o que dificilmente ocorre, aliás), isso não impede que o trabalho do tradutor seja uma verdadeira criação.
Traduzir é uma tarefa complexa, em que, através de um processo interpretativo, se busca uma equivalência de sentido, com soluções estilísticas criativas. A tradução tem sido, dessa forma, para muitos grandes poetas, um momento de descoberta e invenção.
E assim foi, creio, no caso de Henriqueta Lisboa, que leu, leu muito, leu copiosamente, antes de traduzir. Fazia da leitura um exercício de aproximação, deixando-se guiar pelo jogo das afinidades espirituais. E eram essas que ditavam sua escolha final, sua escolha para a permanência. Henriqueta traduziu daqui e dali, mas fez parada em dois grandes poetas: Dante Alighieri e Gabriela Mistral. A afinidade com Gabriela vinha da poesia e do magistério. A afinidade com Dante residia na religião e na poesia.
As circunstâncias desta sessão de estudos me obrigam a fazer, também eu, uma escolha. Falarei apenas da tradução de Dante e procurarei fazê-lo brevemente.
Em 1965, o Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, de São Paulo, comemorou o sétimo centenário do nascimento de Dante com uma série de conferências cuja unidade estava no seu objeto – a (Divina) Comédia – e na forma de abordagem da obra: não a de um estudo crítico, mas a de um depoimento pessoal sobre a descoberta da obra e sobre a experiência emocional da leitura. O que se pedia era o testemunho autobiográfico do conferencista a respeito de seu diálogo com Dante. Foram convidadas, dos mais diferentes setores, figuras expressivas da cultura brasileira, incluindo-se poetas, romancistas, críticos, historiadores, juristas, filósofos.
Henriqueta Lisboa, que já vinha traduzindo o “Purgatório”, foi convidada para abrir o ciclo de estudos, como se vê pela ordem dos artigos na publicação intitulada O meu Dante. Leiamos os seus períodos iniciais:
Com toda a pureza de sua essência, espelho partido é sempre espelho, em cada uma das partículas refletoras.
Contemplado, bafejado, esquadrinhado, percutido e perquerido em suas facetas, esse monumental retrato da humanidade que é a Divina comédia conserva a mesma limpidez de há sete séculos. (p. 9)
Numa imagem belíssima, que ouso interpretar assumindo o risco de quebrar-lhe o teor poético, Henriqueta justifica, de certa forma, a sua escolha: são as qualidades intrínsecas da Divina comédia (“a pureza de sua essência”) que explicam a sua permanência através dos séculos (“espelho partido é sempre espelho”), a sua perenidade (“sempre”… “esquadrinhado, percutido e perquerido”), a sua validade universal (“monumental retrato da humanidade”) e, portanto, a sua modernidade (“conserva a mesma limpidez de há sete séculos”).
Henriqueta faz em seguida um relato comovido de suas primeiras notícias de Dante, ainda na meninice: notícias vagas de “um homem que havia conhecido o inferno por dentro”, ouvidas talvez das camadas de imigrantes italianos que colonizavam o sul de Minas e se integravam na população de uma cidadezinha do interior.
Vêm, tempos depois, as tentativas de leitura do texto em tradução portuguesa, durante a mocidade, já após o colégio de religiosas francesas. Foram numerosas tentativas, todas elas sucessivamente abandonadas: o texto, com suas “dificultosas inversões estilísticas”, devia ser mesmo rebarbativo. Era possivelmente a tradução do barão da Vila da Barra, talvez, a única disponível na biblioteca da família.
Já à beira da desistência, depara Henriqueta com a tradução de um canto do “Inferno” por Machado de Assis. O trecho escolhido por Machado não era muito simpático a Henriqueta. Teve, porém, diz ela, “o condão de estimular-me para o confronto”. Foi daí que nasceu o encanto, como declara:
A simetria da estrutura, para quem sempre amou a ordem, com a organização dos tercetos e das três rimas encadeadas como elos de corrente, foi decisiva para que eu me aproximasse de Dante. (p. 10)
Esse depoimento me parece eloquente, pela prova que nos dá da função motivadora de uma boa tradução. O que ela não esclarece – nem podia fazê-lo – é o conceito de boa tradução. Diga-se, entre parênteses, que a qualidade de uma tradução parece associar-se às respostas que se possam dar a algumas perguntas fundamentais: quem traduziu? O que traduziu? Como traduziu? = Voltando à história desse diálogo entre Henriqueta e Dante, veio em seguida nova tentativa de leitura da tradução portuguesa disponível (talvez, como já disse, a do barão da Vila da Barra). A leitura foi novamente interrompida e trocada pela tradução espanhola integral de Bartolomeu Mitre. A essa altura, Henriqueta já tinha contatos vários com textos italianos, mais precisamente romances italianos, no original. Mas foi a tradução espanhola que a encorajou a enfrentar, de novo, o original da Divina comédia. Ouçamo-la:
Ao encontrar a tradução integral de Bartolomeu Mitre para o espanhol, animei-me de novo a desbravar, em confrontação de página a página, a edição comentada por Scartazzini. Então avancei para o “Purgatório”. Havia chegado o momento. Enamorei-me do “Purgatório”, deslumbrada diante de tão grave beleza e serena poesia. Dificilmente o abandonarei em troca do “Paraíso”. É o clímax da Divina comédia, a meu ver. É a hora da consciência a refletir-se na translucidez do mármore, a debater-se fosca nas arestas do rochedo confessional, a receber no rubor sangrento da aurora o perdão de seus descaminhos. É a hora da responsabilidade que dignifica, da justiça que se cumpre, do claro reconhecimento da destinação humana. (p. 10)
Quem já leu o “Purgatório” situa logo algumas das alusões poéticas de Henriqueta: “hora da consciência”, “arestas do rochedo confessional”, “o perdão de seus descaminhos”. Trata-se do canto IX, um dos mais belos de todo o “Purgatório”, se não de todo o poema.
Pode-se percorrer, assim, o itinerário progressivo das escolhas que revelam as preferências de Henriqueta: entre os poetas, Dante; entre as obras de Dante, a Divina comédia; entre as três partes do poema, o “Purgatório”; entre os 33 cantos do “Purgatório”, o IX. Dispenso-me de comentar, tanto em relação a Dante quanto em relação a Henriqueta, o que isso poderia significar em termos de simbologia numérica.
Fique, porém, assinalada a cadeia sucessiva de escolhas que, embora não declarada, culmina com o canto IX do “Purgatório”. É o que se depreende dos implícitos da conferência de Henriqueta, que, explicitamente, justifica apenas sua preferência pela segunda parte da Divina comédia. Aliás, dando continuidade, por longos anos, ao seu trabalho de leitura de Dante, Henriqueta chega a publicar o volume Cantos de Dante, com a tradução de dez cantos do “Purgatório”7.
Gostaria de dispor de tempo para fazer aqui e agora um confronto estilístico entre o original e a tradução do canto IX. Ou pelo menos de parte dele, até o momento em que os caminhantes deixam o antepurgatório e se preparam para entrar no reino do purgatório. Dante faz, então, uma pequena pausa narrativa (apenas um terceto) para dirigir-se ao leitor, chamando-lhe a atenção para o tom elevado que convém ao assunto. Eis a terzina de Dante e o terceto correspondente de Henriqueta:
Lettor, tu vedi ben com’io innalzo
la mia materia, e però con più arte
non ti maravigliar s’io la rincalzo. (p. 48, v. 70-72)
Vês, leitor, que enalteço com voz pura
o assunto; não te admires se mais arte
trouxer a esta mensagem porventura. (p. 49)
É uma pausa moderna, como se vê. Fazendo um apelo ao leitor, o poeta o torna participante da narrativa, presta-lhe conta da elevação de tom que o assunto exige, previne-o de que o canto poderá enaltecer-se com mais arte ainda. Dante mostra-se consciente de que o texto constitui um lugar de encontro entre duas sensibilidades. Com efeito, o ato da escrita se complementa com o ato da leitura.
Se pela fala direta ao leitor o trecho cumpre a função conativa da linguagem, também exerce a sua função metalinguística quando assinala a elevação do estilo, em consonância com a elevação do assunto. Simplesmente por esse terceto, já se pode ver, pois, outra afinidade entre o poeta e sua tradutora: a preocupação com o fazer poético, a tendência para a autoanálise, a consciência das formas linguísticas, cultivada por dever de ofício. Henriqueta, em vários ensaios, se debruçou sobre a própria obra, seus problemas estéticos e de linguagem, como fizera Dante na Vita nuova, no De vulgari eloquentia e em passagens da Divina comédia, tal o terceto que acabo de citar. Esse traço da obra do genial poeta florentino não poderia escapar a Haroldo de Campos, para quem Dante é não apenas o criador “de um dos maiores poemas de que foi capaz o espírito humano”, mas “um poeta estranhamente preocupado com o seu ofício, que em mais de uma oportunidade refletiu e teorizou criticamente sobre problemas de composição poética e de linguagem”. O mesmo traço da obra de Henriqueta Lisboa também não escapou aos seus críticos, que já têm dado destaque tanto aos seus textos de autoanálise quanto aos seus metapoemas, em que o impulso criador se faz matéria da própria criação. Não surpreende, pois, que, com tantas afinidades, a brasileira do século XX se pusesse a traduzir o italiano dos séculos XIII e XIV.
O que surpreende é que o tenha feito em estilo tão seu e, ao mesmo tempo, tão dantesco. Pode-se ver isso, por exemplo, num breve confronto entre o original e a tradução, no início do canto IX.
Do estilo do poema sacro, Henriqueta conserva os traços formais, isto é, a estrofe (terzina ou terceto), o metro (decassílabo) e o esquema rímico (a-b-a/b-c-b/c-d-c/d-e-d/ etc.). As rimas são alternadas, estabelecendo-se a equivalência sonora entre as últimas sílabas do segundo verso de uma estrofe e as do primeiro e do terceiro versos da estrofe seguinte. Assim, cada rima se constitui não de um par, mas de um terno, em versos alternados, ultrapassando sempre o limite da estrofe, isto é, soldando as estrofes umas às outras, do início ao fim do canto. Assim fez Dante, assim fez Henriqueta.
Não se pense, porém, que essa espécie de camisa de força, ou melhor, esse constrangimento formal tenha impedido, na tradução, o voo livre da poesia. Embora também a fidelidade ao assunto tenha sido perfeita, a tradução está muito longe de ser literal: preservam-se, dentro da equivalência, a unidade e a identidade do texto de Henriqueta.
As estruturas sintáticas são outras, do que se tem a prova inicial num rápido exame da pontuação, distinta nos dois textos, muitas vezes até mesmo no limite entre as estrofes. O vocabulário, quando há sinônimos cognatos no italiano e no português, também sofre mudanças – o que se deve ora à diacronia divergente das duas línguas no plano semântico, ora à sensibilidade de Henriqueta. Sirva de exemplo, no primeiro verso, a substituição de “concubina” por “companheira”, numa perífrase mitológica que designa a aurora:
La concubina di Titone antico. (p. 44, v. 1)
A companheira de Titão o Antigo. (p. 45)
Os dois substantivos, existentes ambos no português, se equivalem quer no sentido, quer no número de sílabas. Não é, pois, uma exigência da semântica ou da métrica que determina a opção de Henriqueta por “companheira”, mas simplesmente a sua preferência por uma palavra que talvez lhe tenha parecido menos chocante ou mais poética.
Uma comparação de estruturas sintáticas revela que, no estilo de Henriqueta, aparecem predicados verbais, com verbos de ação em forma ativa, onde o texto de Dante se faz com predicados nominais (verbos de ligação + predicativos) ou estruturas nominais de outro tipo (sintagmas nominais ou sintagmas adverbiais). Vejamos, com grifo meu nas diferenças estruturais apontadas, alguns exemplos de versos em que a publicação bilíngue conserva a ortografia italiana arcaica, de edição original não mencionada:
fuor de le braccia del suo dolce amico. (v. 3)
deixando os braços de seu doce amigo.
Di gemme la sua fronte era lucente (v. 4)
Trazia sobre a fronte uma luzente / (joia)
forse a memoria de’suoi primi guai, (v. 15)
a recordar, talvez, de outrora o pranto
più dalla carne e men dai pensier presa, (v. 17)
além da carne ascende e já não pensa
Para não alongar-me mais do que o necessário, passo a um verso no meio do canto e a toda uma estrofe já no final:
cominciò egli a dire: “Ov’è la scorta? (v. 86)
– perguntou ele – Quem vos acompanha?
E quando fur sui cardini distorti (v. 133-135)
gli spigoli di quella regge sacra,
che di metallo son sonanti e forti, (…)
Quando nos gonzos por sagradas leis
se deslocou de sua posição
tal estrondo metálico ela fez (…)
Os limites sensatos de uma comunicação não me permitem continuar o confronto estilístico entre outros traços estruturais da tradução e do original. Com base na comparação de um único traço (estruturas verbais da tradução, em vez de estruturas nominais do original), portanto de forma precária, sujeita ainda à confirmação em outros elementos do estilo, ouso dizer que o texto de Henriqueta nos dá uma impressão de maior vida nos quadros, maior dinamismo nas cenas, enquanto o de Dante nos sugere um ambiente mais estático, mais propício à contemplação. São estilos diferentes, mas ambos de grandes poetas.
Em conclusão, Henriqueta Lisboa realizou, na tradução de alguns cantos do “Purgatório”, uma verdadeira proeza. Setecentos anos de distância tornam qualquer tradução, já de si difícil, um verdadeiro desafio. A língua italiana nascente, balbuciante, sofrendo a concorrência de numerosíssimos dialetos, é a fôrma de que cumpre tirar o poema, para recriá-lo na fôrma da língua portuguesa do século XX, e do Brasil. Salto temporal de gigante, modelagem artesanal de fada! E o “Purgatório” ressurge, recriado, como mais um fragmento daquele espelho partido do qual fala Henriqueta Lisboa, fragmento que não perdeu a limpidez nem a capacidade refletora de sua matriz secular. Tudo é possível, no reino da Poesia!
1 LISBOA, Henriqueta. Vivência poética. Belo Horizonte: São Vicente, 1979. p. 7.
2 FERNANDES, Millôr. Hamlet – A tradução. 34 Letras, n. 3, mar. 1989.
3 Informação colhida em BRUNEL, P.; PICHOIS, Cl.; ROUSSEAU, A.-M. Qu’est-ce que la littérature comparée. Paris: Armand-Colin, 1983. p. 43.
4 BUFFON. Discours sur le style. Apud LAGARDE, André e MICHARD, Laurent. XVIIIe siècle: les grands auteurs français du programme. Paris: Bordas, 1985. p. 257-258.
5 PASCAL. Les pensées. Apud LAGARDE, André e MICHARD, Laurent. XVIIIe siècle: les grands auteurs français du programme. Paris: Bordas, 1985. p. 143.
6 LISBOA, Henriqueta et al. O meu Dante. São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro. Caderno n. 5, 1965, p. 9-20. (As citações seguintes, tomadas a essa obra, vão acompanhadas do número da página, entre parênteses.)
7 LISBOA, Henriqueta. Cantos de Dante. São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro. Caderno n. 7, 1969. Trata-se de edição bilíngue, sem indicação da edição utilizada para a transcrição dos cantos do “Purgatório” (cantos I, II, VIII, IX, X, XI, XII, XXVII, XXVIII, XXIX). A citação seguinte, contida no meu texto (terceto 24 do canto IX), foi retirada dessa edição bilíngue, da qual indico as páginas entre parênteses. Em outras citações posteriores de versos isolados ou de estrofe, indico o número de cada verso, sempre do canto IX, p. 44-53, da obra citada.
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