Prefácio - Quem tem pena de passarinho é passarinho, de Líria Porto - Editora Peirópolis

Prefácio – Quem tem pena de passarinho é passarinho, de Líria Porto

Um deus passarinho

Marilia Kubota*

Em Quem tem pena de passarinho é passarinho, a poeta Líria Porto celebra a natureza. Este é um tema recorrente na poesia, com a associação a um criador divino que se aproxima da figura do artista. Aí o transcendente é grandiloquente e intangível. Líria se deslumbra diante de uma natureza cotidiana e visível.  A divindade pode estar numa paisagem ou numa criança que habita as margens sociais: deus é menina / tem cachos – eu acho talvez seja negra.

Com o olhar voltado para as transformações da natureza, Líria ensaia a criação de haicais, poemas minimalistas de origem japonesa: os sapos as rãs / saltos à beira do lago / todas as manhãs. Alguns desses poemas saltam aqui e ali, mas Líria persiste em um fôlego mais longo. Talvez por ainda não ter como mirada única a contemplação da natureza e a forma brevíssima.

A poeta há tempos conquistou uma voz marcada pela concisão, e sua sede do rio não cede a modismos. Como um passarinho, ela quer apenas um lugar pra minha rede / um amor pra minha sede / um pouso, ou seja, qualquer lugar e amores para o seu cantar, porque há lírios no pântano. Os passarinhos, esses pequenos seres celestiais, são símbolos não apenas de sua liberdade como de solidão: não voo / isso me exclui do bando / da banda / do ruflar das asas / e do rufar dos tambores. Usando o bem-te-vi como mote, a poeta entoa uma canção do exílio às avessas, em que manifesta um desejo singular / de morrer neste lugar / e de aqui renascer. Também são os pássaros os mestres que ensinam como se tornar leve diante da morte: já vivi suficiente / das cangalhas me livrei /  aprendi a bater asas / a circular sem fronteiras.

O olhar que se volta ao natural é a tentativa de reagir a um mundo em que a natureza é explorada à exaustão pela utilidade ao ser humano. Esse olhar difere da visão romântica ou simbolista, porque a natureza não é apenas uma paisagem para o individualismo. Confunde-se com o eu para o resgate de uma espiritualidade não num plano celeste, mas em nível terrestre. E assim a poesia é o veículo, a linguagem que conecta a natureza à potência de vida.

 

* Marilia Kubota é escritora e jornalista. Seus últimos livros, lançados em 2020, são Velas ao vento (poesia) e Eu também sou brasileira (crônicas).

 

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