Prefácio – Orestes em quadrinhos
Álvaro Faleiros
Este Orestes é mais uma realização de um longo trabalho coletivo de mais de uma década, dirigido por Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, de reencenar clássicos gregos, tanto no palco como em quadrinhos.
Performar esses dramas e narrativas na página viva de uma HQ demandou profunda reflexão dos envolvidos, que se encontra sintetizada nos vigorosos e originais ensaios que formam o livro Pescando imagens com rede textual: HQ como tradução, cuja organização Tereza Virgínia compartilha com a professora e pesquisadora dos estudos da tradução Andréia Guerini.
A primeira obra traduzida por imagens ali mencionada é a Ilíada, à qual se somaram posteriormente a Odisseia e este Orestes, as três em parceria com o quadrinista e editor Piero Bagnariol. São dele as reflexões a respeito do “poder constitutivo de visualização que o texto grego oferece” e de como, por meio das imagens, é possível compreender passagens que exigem “um esforço desmedido de tradução cultural”.
Conforme Bagnariol, às técnicas desenvolvidas, inspiradas em grande medida nas pinturas gregas em cerâmicas – com suas figuras de perfil, seus motivos geométricos, sua disposição cruzada para cenas simultâneas, sua composição em anel para evidenciar a circularidade do tempo –, soma-se um jogo de tamanhos e formas das personagens em função de sua posição entre céu e terra. Um homem, um semideus e um deus não têm os mesmos volumes e proporções. Esses são alguns dos recursos empregados pelo quadrinista ao reimaginar os dois grandes épicos homéricos.
Em Orestes, a tradução por imagens ganha ainda outros contornos. Não se trata apenas de projetar uma narrativa com suas figuras de linguagem refeitas em imagens, mas de trazer o próprio espaço cênico para a página, pois o que está em jogo é teatro. Zuber Skerritt, ao se debruçar sobre o assunto, destaca o duplo processo envolvido na tradução do texto dramático: a tradução do texto e a transposição do texto traduzido para o palco. E este Orestes, antes de ser redesenhado, virou corpo e voz para o palco em trabalho também dirigido por Tereza Virgínia e Anita Mosca, realizado pela Truπersa – Trupe de Tradução e Encenação de Teatro Antigo, e publicado em 2017 pela Ateliê Editorial. Esta versão em HQ se inspira em tudo isso, e vai além…
Ao compararmos a versão para o palco com esta, por um lado, é possível identificar algumas das técnicas desenvolvidas para traduzir os épicos homéricos. No monólogo de Electra que abre a peça, lê-se na versão para o palco: “Tântalo, aterrorizado como uma pedra que paira acima de seu topete, esvoaça no ar: e paga essa pena dele”. Esta imagem ressurge nos quadrinhos assim:
fig1
É a dificuldade da tradução cultural gerando novos frutos em diálogo, com figurações helênicas, que pinta no pedaço.
Por outro lado, como se pode ler no posfácio dos autores, a mise en scène aqui proposta explora e justapõe regimes de imaginação, como o Renascimento que inspira as vestes do coro, o cáustico de Goya que se cruza com os vasos fúnebres gregos, ou ainda os espectadores com um look pós-moderno que se deixam entrever entre radicais manobras de skate.
Os ollies e nollies imagético-culturais, propostos quadro a quadro, levam às últimas consequências o desejo já expresso no prefácio da versão para o palco de “desmecanizar a tradução”, chegando, na prática, “à quebra de automatismos”. Gesto biopolítico de grande relevância neste nosso mundo algorítmico, pois revivifica o texto, enriquecendo nossa capacidade de refletir sobre a louca condição humana, uma vez que, finda a peça, é disso que se trata.
Álvaro Faleiros é e doutor em Letras (Língua e Literatura Francesa) pela Universidade de São Paulo (2003). É professor de Literatura Francesa da USP. Tem experiência na área de Poesia e Tradução, atuando principalmente nos seguintes temas: tradução, poética comparada e poesia. É também tradutor e poeta.
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