Poe e o conto policial - Editora Peirópolis

Poe e o conto policial

“Os assassinatos da rua Morgue”, conto de Edgar Allan Poe publicado em 1841, é considerado o primeiro conto policial moderno. Histórias de crimes, mistérios e assassinatos sempre fascinaram ouvintes e leitores e existem desde os primórdios da literatura. No antigo Egito, por exemplo, circulava um conto que, por seus elementos de mistério, poderia ser apontado como um conto policial: “A história de Rampsinitos”. E é sem sombra de dúvida que Édipo Rei, a tragédia grega de Sófocles, encenada pela primeira vez por volta de 430 a.C., contém, em seu enredo, todos os passos de um texto policial: um crime, uma investigação e a descoberta do assassino. Por isso, ao dizer que Poe é o autor do primeiro conto policial, não podemos deixar de ressaltar que estamos nos referindo ao conto policial moderno. Nesse tipo de gênero literário, o foco remete ao processo de elucidação do crime, tarefa geralmente a cargo de um detetive, seja ele profissional ou amador. Assim, Poe cria a figura de Auguste Dupin, cavalheiro de grande cultura e pertencente a uma ilustre família francesa, mas, ao mesmo tempo, um homem de hábitos esquisitos, adepto da reclusão e apreciador da noite. A qualidade maior de Dupin, entretanto, é seu poder de análise, sua capacidade de observação, que lhe permite desvendar mistérios não elucidados pelos métodos tradicionais da polícia. Em “Os assassinatos da rua Morgue” Dupin é apresentado aos leitores através da figura de um narrador que não se identifica e que acompanha o personagem em suas andanças pelas ruas de Paris, observando detalhes não vistos pelos outros, e que o levam à descoberta do assassino. O enredo se desenvolve a partir da notícia, lida no jornal, da morte violenta de duas mulheres, passando pela atenção dada ao depoimento de várias testemunhas e pela observação direta do local do crime. Por meio de sua capacidade
observadora e analítica, Dupin chega facilmente à solução do enigma que parecia indecifrável.

Alguns anos mais tarde, Arthur Conan Doyle, ins­pirado em Dupin e em seu companheiro, cria o detetive Sherlock Holmes e o fiel “escudeiro”, Dr. Watson, dupla consagrada em vários livros e hoje popularizada pelo cinema. As técnicas dedutivas usadas por Holmes, bem como por Hercule Poirot, detetive imortalizado pela escritora Agatha Christie, são da mesma natureza das que fazem que Auguste Dupin solucione seus mistérios. O personagem vai aparecer em mais dois contos do autor, “O mistério de Maria Rogêt” e “A carta roubada”. A fórmula é sempre a mesma: tanto o narrador quanto o leitor são mantidos em suspense, enquanto Dupin vai aos poucos desvendando os crimes e chegando, com facilidade, à solução do problema, coisa que nem polícia, nem narrador, nem leitor são capazes de fazer.

Edgar Allan Poe, o “inventor” desse tipo de aventura, é mais conhecido hoje por suas histórias de terror, em que mergulha nos labirintos de cérebros doentios, criando personagens neuróticas e alucinadas, cuja lógica, de forma paradoxal, é regida pela irrealidade. Seus contos lidam com o lado obscuro da alma humana, com o “outro” que se esconde dentro de cada um de nós, e estão repletos de elementos de horror e morte. Essa obsessão pelos desvios da natureza humana vai ser responsável por sua fama de “escritor maldito” e, também, pelo surgimento de biografias que o apresentam como um homem atormentado por perdas pessoais, críticas, problemas financeiros e afetivos, alcoolismo, abuso de drogas e cuja vida teria sido um horror comparável ao horror enfrentado por seus personagens. A biografia de Poe tem características de um romance com lances de mistério e de enigmas sem respostas.

Nascido em Boston, em 1809, filho de um casal de atores, Eliza Hopkins Poe e David Poe Jr, o pequeno Edgar foi abalado pela morte da mãe e pelo desaparecimento de seu pai antes de completar três anos. Adotado por John e Frances Allan, o menino foi viver em Richmond, Virgínia. Sua infância foi marcada pelo amor da mãe adotiva, que nunca teve filhos, e pela indiferença de um pai, que nunca o adotou formalmente, mas que, entretanto, propiciou-lhe excelente educação, tanto na América como na Inglaterra, onde os Allan residiram por um período de cinco anos, entre 1815 e 1820.

Ao retornar com a família para os Estados Unidos, aos 11 anos, Poe já demonstrava uma inteligência superior e um caráter imaginativo e curioso. Além disso, nadava e praticava salto em distância, o que, somado a uma natureza amável, lhe conferia certa notoriedade entre seus colegas. Shelley Bloomfield, que se dedica no presente ao estudo da vida e da obra de Poe, diz que, por volta dos 15 anos, ele entrou em contato com os ideais românticos de Byron, Keats e Shelley. Conta-nos a biógrafa:

Com o grego e o latim que aprendera na Inglaterra (e continuava aprendendo em Richmond), ele lia histórias sobre os feitos dos heróis gregos e romanos. Com a “nova” poesia romântica de Byron, Shelley e Keats, tinha visões de um individualismo extravagante. Classicista? Romântico? Outra coisa? Novas influências poderosas infiltravam-se no adolescente Poe e, enquanto continuava a brilhar na escola, ele também começava a entrever possibilidades de ter criações próprias.

Com o passar do tempo, os desentendimentos entre Edgar e seu pai adotivo, John Allan, agravaram-se. Allan achava que o garoto era mal-humorado e genioso. Por essa época, Poe se apaixona pela primeira vez por uma mulher bem mais velha, mãe de um de seus colegas de escola. Ela era casada e, por isso, tratava-se de um amor inatingível. Mas Jane (esse era seu nome) tinha um real interesse por ele e acreditava em sua potencialidade, sendo sua confidente e protetora. Poe sentia-se carente de afeição, e essa relação dava-lhe conforto emocional. Ainda que sua mãe adotiva o mimasse, a indiferença do pai o magoava profundamente. Por isso, a morte prematura de Jane, quando Edgar tem quinze anos, vai atingi-lo, despertando nele uma melancolia que persistiria na idade adulta.

Poe tinha 17 anos quando, em 1826, matriculou-se na recém-fundada Universidade da Virgínia, onde logo se destacou como o primeiro da classe, obtendo distinção em Francês e Latim. Além disso, era também atleta e poeta. Sobretudo, apesar do mau relacionamento com John Allan, o jovem deixou circular a história de que era seu filho adotivo e herdeiro. Entretanto, John Allan, que havia recebido uma grande fortuna em virtude da morte de um tio fazia pouco tempo, recusava-se a dar a mesada que Poe considerava necessária para pagar os estudos e conviver com seus colegas, a maioria filhos de grandes fazendeiros. Para manter seu status, comprou roupas caras e contratou um pajem pessoal, passando a viver acima de suas possibilidades econômicas. Sem conseguir pagar suas contas, Poe começou a beber e a jogar, contraindo uma dívida de mais de 2 mil dólares. John Allan recusou-se a pagar essa dívida e a continuar financiando sua educação, o que fez Edgar abandonar a Universidade, menos de um ano após seu ingresso.

Durante dois meses, talvez numa tentativa de reconquistar o apoio do pai adotivo, Poe trabalhou no escritório de contabilidade de Allan. Mas a incompatibilidade entre os dois era evidente, e Edgar saiu de casa, indo viver com alguns amigos e, logo em seguida, partindo para Boston. Levava uma pequena quantia em dinheiro que lhe fora dada por Frances Allan.

Boston, naquela época, era uma espécie de capital intelectual dos Estados Unidos e, portanto, o lugar ideal para acolher o jovem candidato a poeta. Quatro meses após sua chegada à cidade, um editor local publicou seu primeiro livro de poesias: Tamerlane e outros poemas. Tratava-se de um livro pequeno, de 40 páginas, e a edição não ultrapassou 200 exemplares, mas seu autor tinha apenas 18 anos e orgulhava-se do que lhe parecia ser o início de uma carreira literária de sucesso.

Para sobreviver financeiramente, Poe havia se alistado no Exército dos Estados Unidos, usando um nome falso e mentindo a respeito da idade. Tendo apenas 18 anos, necessitava da autorização paterna para engajar-se no serviço militar, mas, em virtude do recente rompimento com Allan, o jovem não queria recorrer a ele.

Entretanto, tendo progredido no exército, Edgar voltou a entrar em contato com a família. Durante dois anos, trocou várias cartas com os Allan. Por essa época, Frances Allan adoe­ceu gravemente. Já havia muito tempo que a mãe adotiva de Poe não gozava de boa saúde, mas em fevereiro de 1829 ficou evidente que ela estava morrendo. Ela pediu ao marido que chamasse o filho, pois queria vê-lo pela última vez. Mas John Allan demorou-se a atender a esse apelo e, quando finalmente Poe foi avisado de seu funeral, ela já tinha sido enterrada.

A morte de Frances só fez piorar o péssimo relacionamento entre pai e filho. Uma última tentativa de reconciliação deu-se quando Poe resolveu abandonar o exército e ingressar na academia de West Point. John Allan, na ocasião, apoiou a iniciativa do jovem e, graças a sua ajuda financeira e suas amizades influentes, Poe obteve sua admissão na rígida academia militar.

Porém, um segundo casamento de John Allan, que acabou com as esperanças de Poe de um dia receber uma parte da herança do pai adotivo, resultou no rompimento definitivo dos tênues laços que ainda os ligavam. O cadete Poe decidiu, então, que, sem perspectiva de herança, o Exército não seria uma opção viável. Como não era possível abandonar West Point sem um bom motivo, o jovem tratou de conseguir sua expulsão da Academia, quebrando algumas regras que incluíam o comparecimento a aulas, exercícios e formações militares, e frequência à igreja.

A partir dessa época, Poe passa a viver como escritor profissional, o primeiro a tentar tal aventura nos Estados Unidos. Nessa tentativa, foi fundamental o reencontro com membros da família Poe, que o acolheram e lhe deram apoio incondicional. Ele vai para Baltimore, onde, no andar de cima de uma pequena casa, viviam amontoados sua avó paterna, Elizabeth Poe, seu irmão, William Henry Poe, que morava com a avó desde que Edgar fora adotado pelos Allan, sua tia, Maria Clem, e seus dois filhos pequenos, Virginia e Henry. A esse grupo juntou-se Edgar, com vinte e um anos, sentindo, pela primeira vez, que tinha uma família. Sua tia era uma mulher forte e trabalhadora, que acreditava no talento do sobrinho e lhe oferecia apoio econômico e afetivo.

Precisando ganhar a vida, Poe foi trabalhar como editor de uma revista literária, em Richmond. Nesse cargo, tendo que revisar as obras novas que lhe chegavam às mãos, começou a desenvolver teorias críticas e a escrever ensaios em que aplaudia os que considerava bons escritores e derrubava os medíocres. Embora sendo bem-sucedido em suas funções, Poe acabou perdendo o emprego em virtude de sua insatisfação com o salário e da contrariedade de seu chefe com seus problemas ocasionais com o álcool.

Após uma curta estadia em Nova York, os Poe passaram a morar na Filadélfia, onde viveram de 1838 a 1844. A cidade, naquele período, era um espaço de grande progresso, um cadinho de invenções, inovações, atividades e crenças visionárias. Poe entusiasmava-se com as novidades de seu tempo, tendo, inclusive, se interessado pela frenologia, uma teoria que alegava ser possível descobrir o caráter de uma pessoa a partir do estudo das dimensões de seu cérebro.

Foi ali que Poe escreveu alguns de seus melhores contos, inventou a história policial moderna e deu continuidade às atividades de crítico literário. Tornou-se, também, um dos editores do Gentleman’s Magazine que mais tarde veio a chamar-se Graham’s Magazine. A essa altura, já estava casado com sua prima Virgínia. Eles uniram-se em 1835, numa cerimônia secreta, pois, ao que tudo indica, alguns membros da família faziam objeções a esse relacionamento, não por causa da pouca idade da noiva, que era uma adolescente de apenas treze anos, mas pela impropriedade da escolha que ela fizera.

Em que pese seu sucesso como editor – conseguia aumentar a circulação das revistas para as quais trabalhava – e o salário razoável que recebia por seu trabalho, Edgar estava descontente com as concessões que era obrigado a fazer, publicando textos de menor qualidade mas que, agradando aos leitores menos exigentes, aumentavam a vendagem da revista. Por fim, ele demitiu-se, transferindo-se com a esposa e a sogra para Nova York. Lá, mais uma vez trabalhou como coeditor do Evening Mirror, onde “O corvo”, seu mais célebre poema, foi publicado pela primeira vez. Depois, transferiu-se para o Broadway Journal até 1846, quando decidiu editar sua própria revista literária.

Infelizmente, faltavam a Poe os recursos econômicos e diplomáticos necessários para levar adiante o empreendimento planejado. Além disso, a saúde de Virgínia, que começara a deteriorar-se a partir de 1842, inspirava cuidados, e ele precisava ganhar dinheiro para pagar as contas e dar a Virgínia a vida saudável que os médicos recomendavam.

Para sobreviver, Poe costumava protagonizar encontros literários em que atuava como palestrante, discorrendo sobre prosa e poesia. Entretanto, uma atuação desastrosa em 1845, em Boston, decretou a queda de sua reputação como conferencista.

No início de 1847, quando Virgínia vem a falecer, vítima de tuberculose, o casal enfrentava uma situação de grande miséria, e a jovem, de apenas 25 anos, foi enterrada com roupas doadas por uma amiga do casal. O desespero que tomou conta de Poe após a morte da esposa não impediu que ele buscasse novos relacionamentos, todos fracassados. No final de sua vida, o escritor reencontrou Sarah Elmira Royster, que na juventude fora sua noiva por um breve período. Vinte anos depois, viúva como Poe, e transformada em uma mulher madura e rica, Elmira, apesar da ameaça de perder a propriedade deixada por seu marido e dos rumores a respeito da má reputação do poeta, concordou em casar com ele. No entanto, dois meses após o noivado, Poe morreu.

Como já dissemos, a vida de Edgar Allan Poe constitui-se num romance cujo mistério final provavelmente jamais será desvendado. Falando sobre as questões que culminaram na sua morte, Shelley Bloomfield, diz:

Foi assassinato. Foi epilepsia. Foi diabetes. Foi o coração. Foi raiva. Foi dipsomania, hipoglicemia, delirium tremens causado por um caso grave de alcoolismo. Nas dezesseis décadas desde a morte de Poe, o fato de que o estranho e inconclusivo caso de sua doença fatal apareça ainda em biografias e periódicos de medicina parece conveniente para o pai da história de detetives.

O que se sabe sobre os últimos dias de Poe, em Baltimore, baseia-se no relato do amigo Joseph Snodgrass que, avisado por alguém que reconhecera o poeta caído sobre um banco e em aparente estado de inconsciência, foi encontrá-lo em uma taverna, com um ar ausente e desgrenhado. Segundo Snodgrass, Poe trajava roupas miseráveis, de má qualidade, gastas, que quase não cabiam nele e que provavelmente não eram suas. Ele achou que o amigo estava embriagado e levou-o para o Washington Hospital, onde Poe faleceu no dia 7 de outubro de 1849 sem recobrar a consciência. O registro hospitalar aponta uma congestão cerebral como causa do óbito. Mas o fato de o corpo não ter sido autopsiado faz com que o mistério de sua morte continue sendo investigado por estudiosos, biógrafos e médicos.

Shelley Bloomfield chama nossa atenção para o fato de que as experiências de Poe com álcool e láudano só foram alvo de especulações após sua morte. E que descrições de Poe como um louco e um demônio são fruto das manipulações de Rufus Griswold, executor do testamento literário do escritor e seu primeiro biógrafo. As palavras de Griswold foram aceitas como verdadeiras, e a imagem de Poe acabou sendo manchada para sempre.

Durante sua curta vida, Edgar Allan Poe escreveu vários poemas, contos, ensaios literários e somente uma narrativa mais longa, A história de Arthur Gordon Pym. A maioria dessas produções foi publicada em jornais e revistas da época.

O primeiro livro de Poe, Tamerlane e outros poemas, surge em 1827. Segue-se a publicação, em 1829, de Al Aaraaf, Tamerlane, e poemas menores. Por fim, em 1830, em Contos do grotesco e do arabesco, o escritor apresenta suas mais conhecidas e populares histórias de terror.

Há várias publicações das obras de Edgar Allan Poe no Brasil; a primeira integral e em português saiu pela Editora Globo, em Porto Alegre, em 1944.

Atualmente, o conto “Os assassinatos da rua Morgue” pode ser encontrado em português em várias antologias e publicações isoladas. Nesta nova tradução buscou-se manter a fidelidade ao texto original e tornar a leitura mais acessível a leitores jovens. Fiéis a essa opção, acrescentamos notas de rodapé, explicando o significado de expressões que no original estão em vários idiomas e elucidando algumas biografias e conceitos. O texto foi dividido graficamente em duas partes: a primeira, apresentada em itálico, traz o discurso introdutório do narrador, que faz digressões sobre a arte dedutiva. A segunda é a história em si, que vai ilustrar as reflexões iniciais.

Mara Ferreira Jardim

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