Prefácio – Antigamente era assim
Por Gabriela Romeu
Quando chego a uma casa num dos muitos sertões do Brasil, a conversa muitas vezes começa já na soleira da porta, após um “ô de casa”, e segue adentrando a sala do santo. É nessa antessala das moradas do sertão do Cariri cearense onde devoções a santos se misturam a recordações familiares, um retrato de alguém que nasceu ou já partiu. Em algumas situações, o anfitrião ou a anfitriã convida a visitante a continuar a prosa na cozinha, ao pé do fogão. Quando isso acontece, cresce um arrebatamento por dentro, pois é naquele espaço da intimidade da casa onde geralmente são contadas as melhores histórias (ou talvez feita uma revelação, resgatada uma lembrança), tudo acompanhado do cheiro de um café escorrendo no coador, ou entre os gestos de escolher o feijão e da constância das mãos mexendo um caldo fumegante.
De certo modo, as narrativas deste livro nos convocam a habitar a cozinha e suas alquimias, a visitar esse lugar de saberes e fazeres multissensoriais e milenares, daqueles de travessias atemporais. Entre histórias de diferentes tradições e relatos de experiências de seis narradoras e um narrador, vamos encontrando as chaves de um portal para o tempo das coisas do antes, ou do “tempo em que o tempo tinha tempo para dar ao tempo o tempo de tecer o momento”. Da perseverança para alcançar o ponto certo de uma geleia no tacho ou de revelar o jeito singular de cada um para capinar o próprio chão, território sabedor de histórias e origens.
O processo da busca de cada uma das autoras e do autor nos conduz aos ofícios e labores de um tempo que não sei se de ontem ou de hoje, mas pra mim de sempre, o que aqui também se intitula “antigamente”. Labores similares aos de meu avô seleiro e violeiro ou minha avó rezadeira e apanhadora de lenha no interior das Gerais, das Minas de meninas e meninos. O tempo dos nossos ancestrais e dos ciclos da natureza, da hora do lusco-fusco ou da espera da noite, dos ritos e rituais, dos preparativos de uma festa, uma viagem de batelão, os preparos de um folguedo, entre outras formas de reinventar nos dias o próprio viver, o que acontece nas estradas do agora de muitos Brasis.
É também o tempo da “boa hora” da Nossa Senhora do Bom Parto. Momento da urgência da mãe de Regina Alfaia, que narra habilmente a saga do próprio nascimento, enredado na jornada de três heroínas (ela próprio no romper a vida, a mãe e uma mãe-de-umbigo, dona Soba), todas numa beirada de mundo próxima à curva de um rio. Ao ler e reler tão pulsante relato, ainda me pergunto: como um punhadinho tão tenro de palavras pode nos transportar para outros universos ou instaurar em nós outras galáxias? Então logo me lembro que o coletivo Antigamente era assim segue numa jornada interior adentro em tão inspirada companhia, Regina Machado, uma narradora mestra e maestra que nos convoca a não esquecer a importância do “olho virado”, uma tecnologia de alembramento, uma maneira de transitar as experiências e os aprendizados sem olvidar de quem se é, de onde vem, para além do importante sustento bibliográfico de qualquer pesquisa, também apontado na obra.
Além das Reginas, também Sandra Carezzato, Renata Truffa Tarabay, Kika Antunes, Inês Breccio, Maria Marta Faria e Josias Padilha acionam o modo “olho virado”. Um “olho virado” que nos ajuda a ver com todos os sentidos, assim como sempre me fazem recordar as crianças em seus brincares cheios de narrativas por muitos quintais do país. Um espiar o mundo com o corpo todo, como a criança ribeirinha que flecha certeira o igapó. Assim, da janela da cozinha do sertão, também ouço o silêncio de uma sala de aula diante de uma professora, e ainda os estrondos da floresta de gigantes de sua avó; sinto o cheiro das panelas de uma Confraria de Feijões Mágicos; tateio uma colcha de retalhos; me comovo com a persistência do corajoso recomeço de uma narradora que tanto admiro, e provo o gosto da primeira vez de uma coalhada, mais uma das imagens que simbolizam o tempo de preparo da história.
A preparação para se narrar um conto é uma grande travessia, e já me sinto numa incursão pelo tempo de cada uma das histórias, a vazar e a encher em seus ritmos únicos, ou seguindo a tábua das marés das palavras narradas. “Pressa pra que, minha fia?”. Eu aciono meu “olho virado” e me lembro o que ouvi certa feita numa comunidade quilombola nas vazantes do rio São Francisco. “Não se apresse se não sabe o que vai encontrar, buscar lá na frente…”, completou Maneloião, relembrando o que dizia seu Nhô Nhô Chico, quando pressentia no ar uma ligeireza sem precisão.
É preciso, no entanto, saber o que levar na viagem, fazer escolhas nada fáceis. “Barco cheio demais não atravessa a correnteza. Afunda”, avisa Regina Machado.
Então apetrechos certeiros são necessários para a travessia, a começar pela escolha correta dos alimentos mais frescos para o que se pretende narrar (aquela história do coração que pede para ser contada); jogos e exercícios criados para achar o ponto da história, exercitar e encontrar o léxico genuíno de cada narrativa; percorrer geografias, sonoridades, paisagens de um conto; experimentar no trajeto momentos de voo e de pouso; (re)visitar o elemento da contemplação, que desacelera a lógica da produtividade e permite viver a experiência, ou aquilo em que nada (e tudo) acontece; cavoucar em si a essência ao narrar o que mais ressoa; a escuta atenta ao que dizem por diversos falares os ouvintes, criança, adulto, pedra ou bicho.
O que é contar histórias? Algumas frases ficaram ecoando dias em mim, enquanto buscava um caminho para este texto, deixando que as palavras fossem aos poucos subindo minhas margens, feito água de rio em tempo de enchente. “Contar história é comparável ao que faz a filha da Boiuna quando designa o nhambu para anunciar a noite e o cujubim para proclamar o dia“, que se enuncia só no necessário, sem se exceder na aparição, conta Regina Alfaia, essa narradora que banha meu ouvido com seu falar de ecos ribeirinhos. E como narrá-las? Um jeito é exercitar contar e recontar a mesma história diante de diferentes públicos, entre eles uma trilha de árvores silenciosas e atentas, assim como sugere Maria Marta Faria.
Se este livro acertadamente não entrega ao leitor um receituário de iguarias ou um manual de viagem, apesar de ser uma verdadeira incursão ou um delicioso banquete da arte da narração, ele nos provoca a percorrer processos investigativos e criativos, práticos, poéticos e teóricos. Em cada um dos percursos desvelados, as palavras têm sabor, vocábulo que em latim tem a mesma origem etimológica de “saber”, como disse numa certa aula emblemática o ensaísta francês Roland Barthes.
Depois de ler o livro, fica um desejo de retornar à cozinha, talvez preparar uma receita afetiva. No meu caso, a vontade de fazer com minha mãe e minhas tias, mulheres de uma família de sete irmãs, todas mineiras e ávidas narradoras do próprio viver, uma cheirosa pamonhada, como no antigamente da minha infância. Entre os labores desse preparo – um processo demorado de tirar a palha do milho, depois ralar e peneirar o alimento, ainda cozinhar a sua massa –, muitas narrativas costumam transbordar, inclusive aquelas sobre nós mesmas. Que venha o tempo do milho.
Gabriela Romeu é jornalista, documentarista e escritora, especializada em produção cultural para infância, com vinte anos de atuação em projetos que abordam temáticas infantis e desenvolvidos em diferentes plataformas, como livros, documentários, sites e exposições.
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