A Instrumentalina, de Lídia Jorge: de bicicleta se vai longe
Por Solange Cardoso
Há livros que parecem ter sido criados a fim de fisgar o leitor pelas sensações. Quando estamos diante de um título desses, nos deparamos com a combinação de alguns elementos: linguagem de fácil compreensão, mas bem trabalhada, e história cativante e sedutora, narrada de maneira que nos faz embarcar numa viagem por uma leitura prazerosa e emocionante.
Lídia Jorge, uma das mais importantes escritoras de língua portuguesa, leva isso tudo ao pé da letra. Com graça e leveza, reuniu esses elementos no conto A Instrumentalina, que você vai conhecer agora. Nele, a autora conta a história de uma mulher adulta que recorda e evoca memórias de sua infância, passada com os primos, as tias e o tio Fernando na casa de campo do avô, no sul de Portugal. Tudo é contado retrospectivamente. A narradora é uma adulta que, sentada à mesa de um bar à beira do lago Ontário, em Toronto, espera pelo tio e relembra acontecimentos marcantes de outras épocas, como a presença da misteriosa Instrumentalina.
“Quem diria? Escondida no saco das reservas proibidas,
havia anos e anos que não a soltava do seu local de abrigo,
ainda que por vezes o seu selim, a sua roda pedaleira, ou a
imagem caprina do seu retorcido guiador me aparecessem
como coisas desgarradas.”
Essas recordações rememoram também os tempos em que a narradora viveu na casa do avô. O relato faz uso da analepse, recurso literário por vezes chamado de flashback e mais conhecido por seu uso no cinema. A volta ao passado, uma ligação intrínseca entre espaço e tempo da narrativa, é aqui elemento essencial e vertigem de leitura. Toronto é o lugar da atualidade, a partir do qual
as lembranças da narradora são magicamente evocadas. Já as terras da campina representam o passado, um espaço rural onde foi erguida a casa do avô e onde se passa a história central do conto.
Numa grande casa, a narradora e os primos viveram com as mães (que foram abandonadas pelos maridos) e com o avô inválido, um homem austero e conservador, preocupado somente com
os negócios e com o patrimônio familiar. Flagramos essas mulheres em obediência total à ordem vigente naquele momento, de acordo com o regime opressor imposto pelo patriarca. Cozinhavam, cosiam, liam, escreviam cartas aos maridos ausentes, cantavam e dançavam ao som da grafonola e, à noite, choravam a solidão e o abandono em que viviam. Ao contrário e em contraponto à triste situação delas, as crianças corriam livremente e viviam “como uma matilha indomável, sem dono”.
Está posta a situação inicial do tempo passado, aparentemente imutável, até que, atendendo a um pedido do avô, chega para morar na casa o tio Fernando. Muda-se levando consigo uma série
de objetos inusitados para aquele contexto: sua máquina de escrever, sua câmara fotográfica e a misteriosa Instrumentalina.
Com a chegada do tio, as crianças – e principalmente a narradora – vivem um período de felicidade, aventura e sonho. Isso porque, ao contrário do que esperava o pai, Fernando havia optado por um estilo de vida alternativo, na companhia de seus objetos de paixão, os quais movem a narrativa e mexem com o coração do leitor.
Ainda que a Instrumentalina não seja personagem principal do conto, podemos dizer que é a presença dela que dá sentido à história. No que ela simboliza reside o ponto fulcral do conto: o patriarca, ao pressionar o filho a ficar em casa e assumir as responsabilidades da família, se choca com o espírito aventureiro e sonhador de Fernando, criando, assim, uma tensão que confere certa dinâmica à ação. Essa dinâmica nos envolve e nos motiva a ler sem parar.
Chamada de “transporte de delícia”, a Instrumentaliza impulsiona todas as transformações da família, uma vez que é objeto condutor de sonho e símbolo de liberdade e prazer. Nos duros anos de ditadura vividos pela sociedade portuguesa na primeira metade do século XX – pano de fundo que emoldura a narrativa –, essa família experimentou algo único e inusitado.
Há ainda muito para dizer sobre este livro, mas qualquer coisa além dessas palavras adiaria a leitura e estragaria a deliciosa surpresa que é a descoberta da história. Então, boa viagem!
Solange Cardoso é Mestre em Letras pela Faculdade de Letras da
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e membro do Grupo de Investigação
do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CLEPUL)
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