Terra de cabinha – Posfácio
A primeira vez que ouvi a palavra cabinha foi no terreiro da Fundação Casa Grande. Os meninos disputavam uma acirrada batalha de pião, a brincadeira do boi, e um deles gritou lá de dentro: “Augusto, larga aí, cabinha, tá na hora do programa!”.
Não sei se foi exatamente o Augusto – pode ter sido Felipim ou Iêdo. Mas perguntei na hora o que queria dizer aquela palavra. Os meninos, os cabinhas, explicaram que cabinhas são meninos. Mas entendi que eram meninos com seu universo particular.
Depois dessa primeira visita, viajei bem uma dezena de vezes para o Cariri cearense, a Terra dos Cabinhas. Sempre tenho vontade de voltar. Foi assim que este livro nasceu.
Foi também ao lado de um cabinha que percorri as estradas do Cariri, sempre subindo e descendo a Chapada do Araripe, verdinha depois da chuva. Samuel Macedo, o cabinha, nasceu no Crato e cresceu menino curioso na Fundação Casa Grande, onde aprendeu a fotografar e a filmar. Então, foi com as lentes de um cabinha que as imagens deste livro foram feitas.
Nas visitas ao Cariri, duas casas sempre me receberam: a Fundação Casa Grande, que é essa escola de comunicação e gestão dos meninos do sertão, coordenada por Alemberg Quindins e Rosiane Limaverde, e a casa de Dona Irenice e Seu Chico, pais do cabinha fotógrafo Samuel. Se Samu me apresentou os caminhos da chapada, Dona Irenice me tratou à base de deliciosas tapiocas (e histórias e piadas) e Seu Chico me ensinou a rodar pião, coisa que todo cabinha de carteirinha tem que saber.
No caminho, fomos descobrindo brincadeiras, ouvindo histórias, comendo mungunzá, contando piadas, percorrendo trilhas com as crianças, provando seriguela no pé, seguindo os reisados nas ruas, conhecendo pessoas incríveis e fazendo amigos. Difícil colocar aqui os nomes de todas as pessoas que nos abriram portas e porteiras, nos indicaram atalhos e levadas.
Terra de cabinha são todas as estradas, cidades e lugarejos que percorri – Crato, Nova Olinda, Jardim, Serra do Zabelê, comunidade dos Azedo, Gesso, quilombo Carcará. É povoada por todos os meninos e meninas, pequenos e crescidos, que conheci – Dó, Ju, Enoque, Ricardo, Glabiel, Jacaré, Maria, Júnior, Yasmin, Thiaguinho. Mistura passado e presente, o que é e o que eu vivi ali.
Em algumas dessas andanças tivemos como companheiros de estrada a jornalista e amiga Marlene Peret e o fotógrafo Helio Filho, outro menino crescido da Fundação Casa Grande. Foi com Marlene que idealizei o
Infâncias, projeto que registra o cotidiano das crianças por muitos cantos do país, além da chapada sempre verde do Cariri.
Nas idas e vindas para o Cariri, descobri que deve existir algum ímã que liga o centro do nosso coração ao centro do sertão, com o perdão da rima. Sempre tive o sertão como rota, acho que desde menina sou fascinada pelas histórias do Brasil de dentro. E o Cariri é um desses lugares que me encantaram até antes de por lá pisar.
Antes mesmo de Samuel Macedo virar meu parceiro neste projeto, andamos juntos um dia pela região. Ele dirigia um carro e falávamos bastante. De repente, uma senhora surgiu na nossa frente, o carro freou repentinamente, nos assustamos. Em tom de bronca, ela disse: “Espia o mundo, menino!”.
Nunca mais me esqueci dessa frase. Espiar o mundo é o que eu mais gosto de fazer, acho que por isso virei jornalista e documentarista. Espiar com os olhos, os ouvidos, todos os sentidos, mais o coração. Depois de espiar, gosto de espalhar. Foi o que fiz neste livro.
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