Os rastros inesquecíveis da pandemia nossa de cada dia
Texto de Nurit Bensusan, para a série “Pandemia: e eu com isso?”
É possível que as vacinas e os tratamentos que vem sendo concebidos nos livrem do medo do coronavírus e dessa pandemia. Mas será que conseguiremos nos livrar de seu legado? De seus rastros por todo nosso mundo?
Sabemos que a pandemia não se deu por um azar ou por uma casualidade. Ela é fruto das formas com que lidamos com a natureza e não há mais como negar que essas formas têm sido predatórias: a perda de espécies se acelera a cada dia, o clima se transforma rapidamente, as florestas tombam para dar lugar às monoculturas, enfim, tudo contribui para a emergência de novas doenças e para que elas passem a assolar a humanidade.
Por outro lado, isso não pareceu comover ninguém, não moveu nem corações, nem mentes. O desmatamento não arrefeceu, as pessoas não pararam de consumir exageradamente, o mar continuou recebendo toneladas de plásticos, a atmosfera seus bilhões de toneladas de gases de efeito estufa e a maioria de nós simplesmente anseia por voltar a vida “normal”, como se ela fosse aceitável.
Desde o começo dessa pandemia nossa de cada dia, estamos tentando empurrar para debaixo do tapete sua maior revelação: a vulnerabilidade da nossa espécie. Dependemos da natureza, das outras espécies, dos serviços que o ambiente nos fornece para viver e estamos transformando esse planeta convidativo para a humanidade em um ambiente hostil. Viver, porém, com consciência dessa fragilidade é um desafio. Ela coloca em xeque a nossa segurança, a nossa certeza de sermos os senhores da natureza, e desafia nossa arrogância de seres superiores e independentes.
A arrogância humana alimenta-se, por exemplo, da produção, em tempo recorde, de diversas vacinas. Claro que o engenho humano capaz de conceber esses imunizantes é digno de orgulho, mas não deve também nos cegar. E apenas um exemplo deveria ser suficiente para nos colocarmos de volta em nosso lugar, de espécie vulnerável, exposta aos desastres que ela mesma criou. Esse exemplo é o da nossa dependência do caranguejo-ferradura.
Talvez você nunca nem tenha ouvido falar desse animal. Ele é conhecido também por límulo e é um parente próximo das aranhas e dos escorpiões, apesar do nome alternativo de caranguejo-ferradura. É encontrado na parte norte do oceano Atlântico e, se não fosse ele, muitos de nós já estaríamos mortos.
Em meados do século passado, pesquisadores de biologia marinha descobriram que o sangue do caranguejo-ferradura tem uma característica única: ele reage, coagulando, à presença de endotoxinas bacterianas, substâncias que podem contaminar vacinas e outros produtos que podem entrar em nosso corpo. Atualmente, esses animais, que habitam nosso planeta há mais de 400 milhões de anos, ou seja, que acompanharam o surgimento e o desaparecimento dos dinossauros, estão no centro dos testes realizados para garantir que as vacinas são seguras.
A cada ano, cerca de meio milhão de caranguejos-ferraduras são capturados e seu sangue é extraído para produzir o teste conhecido como Limulus Amebocyte Lysate – LAL. Depois, os caranguejos são devolvidos ao mar. A indústria farmacêutica diz que apenas 3% morrem, enquanto os pesquisadores que monitoram as populações desse animal afirmam que a mortalidade chega a 30%.
Todas as vacinas de Covid-19 passam pelo teste LAL para garantir que não seremos contaminados por bactérias. Interessante que, em um mundo com tantas novas tecnologias, tantos produtos sintéticos, ninguém conseguiu ainda um substituto para o sangue azul do caranguejo-ferradura. Sim, e tem ainda essa curiosidade: o sangue dos caranguejos-ferradura é azul, por causa do cobre ali presente. Ou seja, eles são a verdadeira realeza de sangue azul, os que dão o sangue, todos os dias, para salvar vidas.
Depois, porém, de terem contemplado a ascensão e a queda dos dinossauros, de terem acompanhado os elasmossauros pelos oceanos afora, de terem respirado o mesmo ar que os mamutes e de terem visto as últimas focas-monge-do-caribe extinguirem-se, os caranguejos-ferraduras defrontaram-se conosco. As quatro espécies que existem no planeta já estão ameaçadas de extinção, em parte por conta do uso biomédico, mas também por razões bem mais comuns, como a poluição e seu uso como isca para peixes.
Como a demanda pelos testes deve continuar aumentando, deveríamos estar preocupados com a sobrevivência dos caranguejos-ferradura, mas não é esse o caso. Apostamos sempre na tecnologia, que virá, que resolverá…
Além de ser uma aposta perigosa, uma rápida olhada nos números ligados às novas entidades químicas que foram registradas nos últimos 40 anos mostram que mais de 70% são substâncias naturais ou derivadas da natureza, ou ainda sintéticos baseados em produtos naturais. Ou seja, elas vieram diretamente da natureza ou usando a natureza como inspiração. Os novos materiais que vêm surgindo mostram essa mesma tendência: a natureza como inspiração ou seus componentes usados diretamente. As soluções baseadas na biomimética, que mimetizam ou se inspiram na natureza, porém, só podem acontecer se houver natureza. Se a diversidade estiver presente.
E assim seguimos vivendo a pandemia, cujos rastros se espalham pelo mundo afora e habitam nossos corações. Nesse tempo, vimos que o mundo poderia parar e tomar outros rumos, mas escolheu continuar trilhando os mesmos caminhos. Observamos a indiferença de uns em relação ao sofrimento e à morte de outros se agudizar. E, pior, nos demos conta que nem mesmo o perigo de morte é suficiente para mudar o mundo.
E eu com isso? é uma coleção de livros para pensar de maneira ousada e divertida sobre as conexões entre as pessoas e o planeta. Em crônicas ágeis, rápidas e irreverentes, cheias de humor e perspicácia, a bióloga Nurit Bensusan nos faz relembrar a intrigante complexidade da natureza. Resgata a dimensão humana dos problemas ambientais enquanto revela ao leitor conexões aparentemente insólitas entre os diferentes problemas do mundo contemporâneo. A leitura dessas crônicas em mosaico subverte definitivamente o comodismo que parece nos consolar diante de desafios complexos e nos conecta para sempre com a dimensão planetária de nossas vidas.
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SOBRE A AUTORA
Nurit Bensusan é uma ex-humana.
Diante dos descalabros da humanidade, desistiu da nossa espécie, mas não da biologia, nem das questões socioambientais. Enquanto isso, divide seu tempo trabalhando com políticas públicas ligadas à conservação da biodiversidade e das paisagens, e pesquisando temas como a história das paisagens naturais e culturais e o uso do patrimônio genético e dos conhecimentos de povos indígenas a comunidades locais.
Como autora, dedica-se a escrever e organizar livros que contribuam para a popularização da ciência, inserindo-a num contexto mais amplo e em relação direta com o leitor. Ainda encontra tempo para se dedicar à criação de jogos com temas biológicos na oficina Biolúdica. Seus textos são publicados também em seu blog Planeta Bárbaro e no site do Instituto Socioambiental.
Nurit Bensusan tem graduação em Biologia pela Universidade de Brasília (1986), pós-graduação em História, Sociologia e Filosofia da Ciência pela Universidade Hebraica de Jerusalém (1988), graduação em Engenharia Florestal pela Universidade de Brasília (1993), mestrado em Ecologia pela Universidade de Brasília (1997), doutorado em Educação (2012) e pós-doutorado em Antropologia (2019) pela mesma universidade.
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