Noite de brinquedo – Conteúdo complementar
Quanto tempo dura um reinado? E a infância?
Este livro nos apresenta a jornada de Maria, uma menina rainha que cresceu brincando reisado, folguedo popular que é uma mistura de teatro, brincadeira e festejo. Até que um dia, assim como manda a tradição desse brinquedo popular, ela precisa passar a coroa para uma menina mais nova. Não bastasse o desafio de viver esse rito de passagem e crescer, coisas estranhas acontecem no terreiro de Yayá, a avó de Maria, e ela é convocada a atravessar o sertão numa noite escura sem fim. No percurso, encontra personagens lendários e encantados como os Mateus, os palhaços do reisado, uma vaqueira mestra do aboio, as Caboclinhas da mata encantada, o pássaro Jaraguá e seu padrinho ferreiro Nego Zé.
Permeada dos saberes da cultura brasileira, a narrativa tem estrutura de conto acumulativo, em que os mistérios vão se desvendando aos poucos, e novas companhias vão surgindo a cada curva da caminhada, como que para não nos deixar esquecer do dom de sonhar junto, e da perseverança e do entusiasmo necessários para trilhar o caminho.
O texto tem também sua versão em dramaturgia, e foi escrito por Gabriela Romeu, que produziu o documentário Meninos e reis, e acompanha, em extensa pesquisa, o olhar da criança e sua participação no mundo, e pela dramaturga e compositora Antonia Mattos, diretora do grupo teatral Clã do Jabuti e idealizadora desse projeto. As ilustrações são da cearense Luci Sacoleira.
Noite de brinquedo
Conheça o conteúdo complementar
Uma história sobre o reisado e outros inventos
Reisado é bom
Reisado foi minha infância
Ainda hoje eu tenho lembrança
De um reisado que eu brinquei
(Música do reisado cantada por diversos grupos no Cariri cearense)
Todo brinquedo é cheio de história, e não seria nada diferente com o brinquedo desta história. Um brinquedo que roda mais que pião e é toda uma festa, que, para acontecer, reúne pessoas vestidas especialmente para aquela data, tem músicas, danças e dramas. Tem até jogo de espada, em meio a uma festa que se dá nas ruas e nos terreiros.
A saga de Maria Sete Estrelas, protagonista de Noite de brinquedo, está inscrita no universo de folguedo bastante popular pelo país: o reisado. Ela é a menina rainha que cresce brincando com espada em punho pelos chãos de terra batida de seu reino cheio de fitas, espelhos e brincadeiras. Você já ouvia falar sobre o reisado?
Essa é uma manifestação popular do ciclo natalino, assim como as folias de reis, os terno de reis, os bois e os guerreiros. Trata-se de um cortejo encantado em que reis, rainhas, astros, santos e bichos (o Jaraguá, o Boi, a Burrinha) saem às ruas em uma grande brincadeira de faz de conta, no mais verdadeiro viver. É teatro, festejo, brinquedo.
Maria é inspirada nas meninas que brincam o reisado de Congo no Cariri cearense. Como manda a tradição desse brinquedo, assim que a rainha cresce e deixa a infância, precisa passar a coroa para uma menina mais nova. É justamente neste momento na passagem da coroa de Maria para a próxima rainha, que acontece a nossa história. Há um mistério que cerca essa passagem. E para solucioná-lo, Maria vai contar com a ajuda de mestres e diversos encantados.
Além de apresentar personagens e jeitos de brincar o reisado no Cariri, Noite de brinquedo também tem seus reinventos, pois como dizem as autoras Gabriela Romeu e Antonia Mattos, a invenção é parceira da tradição. Assim também nos ensinam as mestras e os mestres do reisado. Na saga da rainha menina que monta seu próprio reisado, nascem também figuras de outros imaginários, como são o caso das Matintas e de outros seres encantados.
Abaixo, ouça um dos mestres mais antigos do Cariri cearense, Aldenir, contando um pouco sobre o reisado em áudio captado e editado por Marlene Peret, durante pesquisa do projeto Infâncias.
Aldenir
No livro e nos palcos
A história da rainha Maria tem também uma versão dramática, uma peça encenada pelo Clã do Jabuti, criado por Antonia Mattos em 2011, quando se formava em direção na SP Escola de Teatro. Surgiu com o desejo de contar histórias tão dos nossos Brasis e tão pouco conhecidas, como é o caso das rainhas guerreiras que cruzam os chãos dos sertões. São muitas as rainhas e suas lutas que precisamos urgentemente conhecer.
O enredo foi pensado e criado pelas autoras deste livro em diálogo com o processo de pesquisa e ensaio do espetáculo desenvolvido em 2021, ano em que diversos artistas se dedicaram ao projeto a partir do Fomento ao Teatro – um edital fundamental, que permite que artistas se dediquem a estudos e investigações de linguagens. O processo envolveu atrizes e atores, músicos, cenógrafos e figurinistas, compositores e compositoras, produtoras, além de estudantes das artes cênicas, a própria diretora e as dramaturgas.
Para escrever a travessia de Maria Sete Estrelas, também viajamos ao Cariri, conversamos com muitas mestras, mestres e brincadores, aprendemos a jogar espada e ouvimos muitas histórias da região. E o brinquedo-peça estreou antes de tudo nos terreiros do mestre Antônio e sua neta Maria Fabrislene (Juazeiro do Norte), da mestra Zulene (Crato), do mestre Aldenir (Crato) e da Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri (Nova Olinda).
Abaixo, conheça um pouco das andanças do Clã do Jabuti pelo Cariri.
No percurso, também lemos sobre o reisado e o congado mineiro, principalmente a partir dos estudos de Oswald Barroso, que tem décadas dedicadas à pesquisa desse folguedo no Ceará, e da professora Leda Maria Martins, poeta, dramaturga e rainha do congado. Destacamos pelo menos três livros importantes desses autores inspiradores: Reis de Congo – Teatro popular tradicional (Minc/Flacso/MIS; 1997) e Teatro como encantamento: bois e reisados de caretas (Armazém da Cultura, 2013), do professor Oswald, e Afrografias da memória – O reinado do Rosário no Jatobá (Mazza Edições; 1997), da professora Leda. Foi a mestra Leda que aprendemos músicas e outras sabenças dos congados que também permeiam nossa história.
Confira na galeria abaixo fotos da montagem de 2023 feitas por Vanderlei Yui.
Outras inspirações
Em diálogo com Noite de brinquedo, está o curta-metragem Meninos e Reis, dirigido por Gabriela Romeu. Neste documentário, de 2016, conhecemos Maria Fabrislene, a rainha que inspirou a história do livro, e seu rito de passagem, ao passar a coroa para a sua irmã mais nova. Ciente da importância desse momento, Maria sente o drama da despedida da infância, ao mesmo tempo em que é acolhida pela comunidade. No curta, também é possível ver muitas cenas e personagens do reisado no Cariri cearense.
Curta-metragem: Meninos e Reis
Outra inspiração da pesquisa é o livro Terra de cabinha – Pequeno inventário da vida de meninos e meninas do sertão, escrito por Gabriela Romeu , com fotos de Samuel Macedo e ilustrações de Sandra Jávera.
Conheça: Terra de cabinha
Na galeria de fotos abaixo, conheça mais dos cabinhas brincando o reisado a partir dos registros de Samuel Macedo.
As vozes e as imagens do reisado
A narradora de Noite de brinquedo nos conta: “Na nossa tradição, eram os Mateus que sempre abriam a porta para o reisado entrar em terreiro ou na casa das gentes do lugar, pisar na boca da mata, noticiar chegada do inverno bom. Sempre. Desde quando os bichos negociavam o próprio viver, eram eles que abriam o cortejo. ” Com seus aboio compridos, “como uma dor carpida no peito”, são eles que abrem as portas de reinos onde meninas são rainhas, tios deixam a lida pesada de um dia (como pedreiros, carroceiros, agricultores) para virar rei, embaixador ou mestre. Avôs e avós deixam para outras gerações um legado de memória no corpo, como nos conta a rainha e professora Leda Maria Martins.
Ouça a seguir mestres (Antonio e Aldenir) e crianças (o menino Junior) falando mais dessa figura cômica que movimenta toda a brincadeira em áudios captados e editados por Marlene Peret, do Infâncias.
Antonio e Aldenir
Junior
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