No calor da tumba de Pandora
Texto de Nurit Bensusan, para a série “Pandemia: e eu com isso?”
Dificilmente Tutankamon, rei do Egito, que morreu aos 19 anos, em 1324 a. C., foi tão famoso na sua época, como foi no século XX. Sua tumba foi descoberta intacta em 1923, contra todas as possibilidades, uma vez que o Vale do Reis, a necrópole onde os faraós eram enterrados perto de Tebas, no Egito, tinha sido saqueada por bandos de ladrões desde que a primeira múmia de faraó foi depositada por lá.
A história da descoberta gerou inúmeras especulações e consolidou a lenda da maldição do faraó. Essa maldição diz que quem viola o lugar onde está a múmia e a própria tumba do faraó é amaldiçoado e encontrará a morte rapidamente. Dizem que nas paredes dessas câmaras haveria inscrições que comprovariam essa maldição. Outros alegam, porém, que a lenda da maldição é uma tentativa, mal sucedida, de afastar os ladrões dos tesouros enterrados com os faraós.
Howard Carter, um arqueólogo inglês, com grande experiência no Egito, que não temia a maldição, nem acreditava que não havia mais tesouros a serem descobertos no Vale dos Reis, começou a pesquisar a área em 1916, com o apoio financeiro de Lorde George Carnavon. Diante dos sucessivos anos sem encontrar nada relevante, o financiamento de Lorde Carnavon ao trabalho de Carter parecia estar chegando ao fim. Conta a lenda, não a da maldição e sim a da descoberta da tumba de Tutankamon, que Carter pediu ao seu benfeitor mais uma última temporada de escavações, assinalando que tinha identificado indícios de que seria possível encontrar uma tumba inviolada.
Com essa esperança, Carter e sua equipe se lançaram ao trabalho e acabaram encontrando uma escada que descia para uma passagem obstruída para o que parecia ser uma câmara mortuária. Na sequência, as escavações levaram a uma antesala, já cheia de tesouros, e à câmara mortuária do faraó Tutankamon. A antesala foi aberta com a presença de Lorde Carnavon e posteriormente a câmara mortuária em um evento com diversas pessoas, inclusive autoridades egípcias, em fevereiro de 1923. Desse momento em diante, as lendas sobre a maldição do faraó se multiplicam. Lorde Carnavon foi o primeiro a morrer em abril de 1923. Dizem que mais de 22 pessoas que estiveram no evento de abertura da tumba morreram nos seis anos seguintes. Enquanto a morte de Lorde Carnavon parece ter relação com uma ferida infeccionada, os outros teriam morrido por causas diversas, inclusive infectados por um fungo presente nas paredes da tumba. Outros visitantes da câmara mortuária também faleceram, contaminados por esse fungo, fortalecendo a ideia da maldição.
Talvez a maldição do faraó seja uma lenda mesmo, mas a possibilidade real de que microorganismos confinados em um lugar possam, ao ganhar liberdade, infectar as pessoas não é uma lenda. A tumba de Tutankamon passou mais de três mil anos fechada e ninguém sabe que microorganismos fizeram companhia para a múmia do jovem faraó nesses milênios.
Três mil anos parece muito tempo, imagine 300 séculos… Em 2014, pesquisadores franceses isolaram um vírus de 30 mil anos, congelado no permafrost e o aqueceram no laboratório. O resultado, surpreendente e assustador, foi que o vírus se mostrou ativo imediatamente. O derretimento do permafrost, devido às mudanças climáticas, pode dar uma escala planetária e aterrorizante para a maldição do faraó. Não se trataria de perturbar o sono eterno do rei do Egito, nem de saquear tumbas e sim de perturbar de forma irreversível os processos que fazem desse planeta um lugar convidativo para nossa espécie e de saquear irremediavelmente o futuro.
O permafrost era um solo permanentemente congelado, localizado no Ártico. Como está congelado há séculos, guarda ali sedimentos de outras eras, esqueletos de espécies já extintas como os mamutes, uma enorme quantidade de carbono, mercúrio e microorganismos causadores de doenças antigas. Agora com seu rápido descongelamento – estima-se que até 2100, se nenhuma medida for tomada, 70% de todo o permafrost estará descongelado – novas ameaças surgem.
As pesquisas nas últimas décadas revelaram grande quantidades de fósseis de mamutes e de outros herbívoros que mostraram que a Sibéria, o Alasca e o oeste do Canadá teriam sido pradarias férteis em épocas do Pleistoceno. Com o esfriamento da região, em função das glaciações do final do Pleistoceno (aproximadamente 110 mil a 10 mil anos antes do presente), a decomposição dos organismos foi retardada e seus restos mortais acabaram aprisionados no permafrost. Essas conclusões mostraram que há muito mais carbono no permafrost do que se imaginava antes.
Atualmente, os pesquisadores acreditam que o permafrost contenha 1.500 bilhões de toneladas de carbono que seriam liberadas na atmosfera no momento que o solo descongelasse e que a matéria orgânica ali depositada fosse degradada. Estimativas apontam para uma injeção de cerca de 150 bilhões de toneladas até 2100. Ou seja, a primeira consequência direta do processo de descongelamento do permafrost é que seu fim vai chegar mais rápido. Com a injeção de mais carbono na atmosfera, o planeta tende a esquentar mais e o permafrost a derreter mais rápido. Essa fonte de aquecimento global, porém, não tem sido considerada nas projeções do clima, só recentemente o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) passou a incorporar as projeções de descongelamento do permafrost.
As consequências desse descongelamento têm relação com um vasto conjunto de preocupações que a pandemia nossa de cada dia trouxe para o nosso cotidiano. Sabemos que a pandemia do coronavírus não é um acaso e sim resultado das formas com que lidamos com a natureza. Um dos fenômenos que pode promover mais zoonoses é o encontro de animais que normalmente não se encontram em seus ambientes naturais. Quando eles se reúnem, seu conjunto de microorganismos, contado aos milhões, também se encontra e as possibilidades de troca e de recombinação aumentam. Assim, vírus e bactérias que infectavam uma espécie, saltam para outras, identificando novos hospedeiros e assim, novas doenças podem surgir. A questão é que a crise climática acelera esse processo, pois os animais se deslocam procurando climas aos quais eles estão melhor adaptados, acabando por promover os encontros.
A migração dos animais do permafrost já pode ser vista. No Alasca, por exemplo, as lebres-americanas habitam agora toda região até o oceano Ártico. Esses animais antes se restringiam às florestas, mas com a mudança drástica da paisagem em função do degelo, as lebres colonizaram áreas que estão a centenas de quilômetros das florestas. Seus predadores, os linces, também têm sido encontrados cada vez mais ao norte, como também os alces. Um exemplo emblemático, que vem deixando marcas na paisagem, é a migração dos castores, estima-se que esses animais estejam se movendo para o norte do Alasca a um ritmo de oito quilômetros por ano.
Mas isso pode ser pouco se comparado aos microorganismos, responsáveis por doenças antigas, que podem reemergir. Doenças que consideramos varridas do mapa, como a varíola; doenças raras atualmente, como o antraz; e doenças que sequer conhecemos. Surtos de antraz, doença causada por uma bactéria, tem acontecido entre as renas da Sibéria. No verão de 2016, um menino e 2,5 mil renas morreram. Como teria havido, em 1941 um surto de antraz na região, que foi chamado de praga da Sibéria, os pesquisadores acreditam que o surto de 2016 se deveu ao descongelamento de uma rena contaminada 75 anos antes.
Na década de 1890, houve uma grande epidemia de varíola na Sibéria e em algumas regiões cerca de 40% da população morreu. Os corpos foram enterrados sob o permafrost nas margens do rio Kolyma. Agora, com o derretimento do permafrost, que acelera a erosão das margens do rio, os corpos podem ficar expostos e o vírus da varíola voltar a se manifestar.
Em 2005, pesquisadores da Nasa ressuscitaram bactérias que estavam congeladas há 32 mil anos em um lago no Alasca e dois anos depois conseguiram trazer de volta a vida bactérias que estavam congeladas há 100 mil anos, na Antártica. Ou seja, bactérias que conviveram com muitas outras espécies de animais e que teoricamente podem causar doenças desconhecidas. Pesquisando amostras de gelo de 15 mil anos em uma geleira no Tibete, pesquisadores chineses e norte-americanos encontraram 33 tipos de vírus dos quais 28 são desconhecidos da ciência. Esses microorganismos podem se combinar com outros que estão presentes entre nós hoje e, na prática, causar muitas novas doenças.
O permafrost abarca cerca de 23 milhões de quilômetros quadrados no hemisfério norte. É uma área imensa que está congelada há milhares de anos. O que seu descongelamento pode trazer, ninguém sabe, mas parece que pode ser uma combinação da maldição do faraó, com a abertura da caixa de gelo de Pandora.
E eu com isso? é uma coleção de livros para pensar de maneira ousada e divertida sobre as conexões entre as pessoas e o planeta. Em crônicas ágeis, rápidas e irreverentes, cheias de humor e perspicácia, a bióloga Nurit Bensusan nos faz relembrar a intrigante complexidade da natureza. Resgata a dimensão humana dos problemas ambientais enquanto revela ao leitor conexões aparentemente insólitas entre os diferentes problemas do mundo contemporâneo. A leitura dessas crônicas em mosaico subverte definitivamente o comodismo que parece nos consolar diante de desafios complexos e nos conecta para sempre com a dimensão planetária de nossas vidas.
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SOBRE A AUTORA
Nurit Bensusan é uma ex-humana.
Diante dos descalabros da humanidade, desistiu da nossa espécie, mas não da biologia, nem das questões socioambientais. Enquanto isso, divide seu tempo trabalhando com políticas públicas ligadas à conservação da biodiversidade e das paisagens, e pesquisando temas como a história das paisagens naturais e culturais e o uso do patrimônio genético e dos conhecimentos de povos indígenas a comunidades locais.
Como autora, dedica-se a escrever e organizar livros que contribuam para a popularização da ciência, inserindo-a num contexto mais amplo e em relação direta com o leitor. Ainda encontra tempo para se dedicar à criação de jogos com temas biológicos na oficina Biolúdica. Seus textos são publicados também em seu blog Planeta Bárbaro e no site do Instituto Socioambiental.
Nurit Bensusan tem graduação em Biologia pela Universidade de Brasília (1986), pós-graduação em História, Sociologia e Filosofia da Ciência pela Universidade Hebraica de Jerusalém (1988), graduação em Engenharia Florestal pela Universidade de Brasília (1993), mestrado em Ecologia pela Universidade de Brasília (1997), doutorado em Educação (2012) e pós-doutorado em Antropologia (2019) pela mesma universidade.
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