Impressões de leitura - O pintor debaixo do lava-loiças - Editora Peirópolis

Impressões de leitura – O pintor debaixo do lava-loiças

oitoO pintor (oito)O pintor (oito)O pintor - ilustra mioloPrefácio à edição brasileira

por Susana Ventura

O livro que você tem em mãos é de um artista português que se expressa de muitas formas e em diferentes suportes: ele ilustra, pinta, escreve e é também músico. Afonso Cruz tem o perfil de uma boa parte dos novos criadores de livros que interessam aos jovens nestes nossos tempos, porque o que ele tem a dizer não cabe numa só maneira de expressão.

Mas o que temos nós, vivendo no Brasil do século XXI, a ver com um pintor dormindo embaixo de uma pia no litoral de Portugal na década de 1940? Mais do que parece à primeira vista, porque O pintor debaixo do lava-loiças é um livro sobre um mundo em transformação – como, aliás, sempre se parece o mundo no tempo que nos toca viver nele.

As grandes mudanças que acontecem ao protagonista Jozef Sors começam nos anos imediatamente anteriores ao início da Primeira Guerra Mundial, num país não nomeado – que, pelas indicações do texto, fica no Leste Europeu.

Jozef, nascido em 1895, chega à idade adulta quando o conflito se inicia. São grandes as mudanças, externas a ele, mas também as modificações internas têm papel primordial na narrativa. A vida se mostra difícil, rica e variada para Sors, que se muda constantemente, levado por forças bem concretas: a guerra, o desamor, a perda daqueles que ama. Mas, dentro dessa realidade de deambulação, ele também realiza escolhas que o levam cada vez mais para longe do seu país de origem, dos seus próximos e de si mesmo. Até o momento em que tudo pode se reverter.

Esta obra é também uma versão juvenil do romance de formação, que é aquele que fala da jornada de um só indivíduo, homem ou mulher, levando-nos a refletir sobre o sentido daquela existência; e assim, por transferência, pensar sobre a nossa própria trajetória. Seguir os passos de Jozef Sors nos faz pensar na nossa própria caminhada, como os teóricos apontam que é o papel do romance desde que se tornou uma forma literária popular, por volta de 1850.

O que aconteceu à Europa nas primeiras décadas do século XX – duas grandes guerras mundiais – é a base sobre a qual se constrói a narrativa. Vale lembrar que as circunstâncias narradas em O pintor debaixo do lava-loiças mudaram a face do mundo em geral, desencadeando uma grande onda migratória. A imigração para os Estados Unidos da América, realizada por algumas das personagens, faz parte do mesmo movimento migratório que transformou a face do Brasil nas quatro primeiras décadas do século passado.

As migrações continuam hoje, são tema dos noticiários e notadas nas ruas das cidades grandes e médias do nosso país. Mudaram os nomes dos conflitos, mas quase nada mais é diferente. As pessoas continuam a se mover em fuga, em busca de melhores condições de vida, atrás da felicidade ou, mais concretamente, em busca de pessoas queridas que partiram do mesmo lugar em tempos diferentes e que, por isso, se perderam de vista.

A narrativa mostra com grande sensibilidade as tensões entre o coletivo a que todos estamos sujeitos, que compreende crises e conflitos, e o individual, no qual enfrentamos os mesmos dramas humanos século após século: compreender o mundo de um modo ou de outro, ter ou não a capacidade de enfrentar a vida de maneira corajosa, amar muitas vezes sem sermos amados.

Jozef Sors e sua grande jornada estão agora à sua espera. Você vai ao encontro deles?

Susana Ventura

Professora de Literatura de Língua Portuguesa e leitora apaixonada

1 Comment

  • Bernardita Maria Fernandez Uhart Posted 18 de abril de 2012 13:00

    O livro da Susana é ótimo!
    A pesar do tema a primeira vista difícil e da postura rigorosa ( bem documentada), ela descomplica e a leitura é enriquecedora e super agradável quase como uma conversa. Susana nos pega pela mão e nos faz percorrer a história e a literatura com a qual saímos encantados, como ela!
    É gostoso de ler e ainda por cima ficou lindo! Com ótimas ilustrações de Silvia Amstalden.
    A única reclamação é que faltou livro! Queria ter desvelada desta forma o resto da historia dessa literatura tão próxima e no entanto, ainda tão desconhecida…Quero embarcar também na próxima viagem!
    Bernardita Uhart

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