Impressão de leitura: “Azul e vermelho”
“AZUL E VERMELHO”
Impressão de leitura por Francisco Marques Vírgula Chico dos Bonecos
Querida Renata, no início do nosso encontro, conversamos sobre o nosso Brasil tão dividido, ensandecido. Depois, fiquei emocionado com a sua leitura do livro “Azul e vermelho”. E tenho revisitado esse livro várias vezes…
“Azul e vermelho” me tocou porque é a história que eu trago gravada nos ossos… Sempre estive mergulhado num ambiente intensamente político e ideológico. Comecei a minha militância em movimentos sociais com 14 anos de idade. Em 1977, fui morar na periferia e trabalhar como operário. Em 1980, fui trabalhar, como missionário, no norte do Mato Grosso, na Prelazia de São Félix do Araguaia – do querido bispo e poeta Pedro Casaldáliga. Durante 30 anos, trabalhei como voluntário nas pastorais sociais da Igreja Católica. Na Pastoral Operária, ajudamos a criar a CUT. Na Comissão Pastoral da Terra, criamos o MST. E nas Comunidades Eclesiais de Base, junto com toda a estrutura da Igreja, ajudamos a criar o PT.
Resumo da ópera: Durante décadas trabalhei numa fábrica de carimbos: direita, esquerda, direita, esquerda, direita, esquerda…
Até que um dia tropecei neste pensamento de Simone Weil:
– Não fique procurando onde está a “direita” e a “esquerda”. Procure sempre onde está a justiça, essa eterna fugitiva do bando dos vencedores.
Assim como o anjo torto de Drummond, o meu anjo escolheu para mim um destino de esquerda. E seguirei firme nessa toada – apenas deixando para trás a fábrica de carimbos…
Atualmente eu consigo até mesmo compreender o que é ser um conservador – na perspectiva de Chesterton:
– Conservador é aquele que faz uma revolução por minuto. Para uma coisa se manter viva, dinâmica e criativa, ela precisa estar em constante reforma. Isso vale para uma casa, um ofício, uma comunidade e um espírito.
Brincando com as palavras, que é o meu ofício, hoje eu me consideraria um “conservador de esquerda”.
Mas…
“Azul e vermelho” me tocou muito mais por ser uma história simples. Como diz o ditado: “É fácil ser difícil, o difícil é ser simples.”. E a história é de uma complexa simplicidade na sua plasticidade e na sua tecelagem literária.
O livro funciona como uma parábola sábia – e nos leva a refletir sobre o que pode acontecer numa sociedade. Mas funciona também como um conto hiper-realista – e nos faz lembrar o que vem acontecendo entre nossos familiares e amigos.
Ao longo da vida, vamos incorporando novas missões ao sabor dos solavancos da estrada… E o livro aponta a nova missão que precisamos acalentar:
– Descobrir as interseções entre o azul e o vermelho – e expandir cada vez mais essas interseções.
E aí surgem os questionamentos… De onde eu vou tirar forças para esta nova tarefa? E mais… Como vamos despertar no outro a vontade de se comprometer com esta jornada? E mais ainda… Como eu posso me prevenir para que esse trabalho não se transforme no seu avesso?
Para essas perguntas urgentes, o livro traz uma resposta:
– É em nome da criança que nós vamos realizar essa missão.
Na história, é evidente o amor da criança por sua mãe e por seu pai. E é evidente também o amor do pai e da mãe por sua filha – ou seu filho. E o desenlace do conflito nasce da lucidez amorosa da criança – aquela mesma criança que um dia gritou: “O Rei está nu!”.
A nossa missão, portanto, é descobrir as interseções – “descobrir” e não “criar”. É o nosso “pensar em círculo” que nos impede de descobrir o “roxo”. Precisamos romper o círculo e pensar em espiral – espiral para cima. Como diz Teilhard de Chardin, “tudo que eleva converge”.
Por exemplo…
A cena: Uma pessoa vivendo na rua em situação de miséria.
Diante dessa cena, a mãe decide:
– Vou arrumar um emprego para essa pessoa.
Diante da mesma cena, o pai decide:
– Vou arrumar uma moradia para essa pessoa.
A decisão da mãe está correta, mas estaria incompleta caso não contemplasse o que está acontecendo “agora” com aquela pessoa. A decisão do pai também está correta, mas estaria igualmente incompleta caso não contemplasse o que vai acontecer “depois” com aquela pessoa.
A mãe se concentrou na indispensável “autonomia” do ser humano, enquanto o pai se concentrou na indispensável “dignidade” do ser humano. E a criança, tomando a mãe e o pai pelas mãos, vai mostrar que “autonomia” e “dignidade” caminham de mãos dadas…
Nas páginas 18 e 19, temos a cena “azul” da rua:
Um dia minha mãe foi para a rua com uma porção de gente para defender o azul.
Nas páginas 22 e 23, temos a cena “vermelha” da rua:
Um dia meu pai foi para a rua com uma porção de gente para defender o vermelho.
Nestas páginas, não observamos a presença exclusiva do azul intenso e do vermelho intenso. Na verdade, eles nem formam a maioria. E se considerarmos os espaços em branco, o azul forte e o vermelho forte formam um pálido grupo…
Com isso, o livro nos mostra que os extremistas, os acorrentados ao “pensamento em círculo”, são minorias. E o livro nos ensina que devemos direcionar a nossa nova missão também para os diferentes tons de azul e vermelho – pessoas que, por múltiplas contradições e ingenuidades, se deixaram seduzir por uma mentira.
E a mentira, como dizem os sábios, é um parasita que se nutre da verdade. O gigantesco poder de atração da mentira está localizado exatamente na pequena porção de verdade que ela ostenta com estardalhaço. E essa gigantesca mentira é capaz de vencer muitas guerras, dominar muitos povos, acumular muitos poderes, mas treme de medo quando escuta a voz da criança:
Mas eu gosto do roxo, principalmente, porque tem o azul da mamãe e o vermelho do papai.
Ninguém pensa igual. Há os que gostam do azul e têm motivos de sobra para isso, e há os que preferem o vermelho, e têm toda razão também. Muitas vezes dentro da nossa própria casa é assim. E com certeza é assim no mundo lá fora: amigos, vizinhos, as pessoas na rua, na escola, e até na televisão – os artistas, os políticos… Impossível não reconhecer as diferenças no mundo.
Azul e vermelho é um pequeno livro-objeto para ser lido por crianças e adultos. Aparentemente, trata de cores e formas, mas, no virar das páginas, alguma coisa acontece no coração do leitor, e na sua consciência.
Idealizado e produzido no mercado editorial independente da Venezuela, reflete a necessidade de conciliação e respeito às diferentes posições, preferências e convicções políticas e ideológicas dos indivíduos. Trata de convivência e das relações entre os diferentes. E da mágica que o amor é capaz de produzir, oferecendo aos diferentes a amálgama da curiosidade e do respeito, e revelando a esperança que reside intacta no coração dos que vivem em ambientes aparentemente irreconciliáveis. Em momentos de exaltação política e de radicalização de posições, este livro tem muito a nos ensinar.
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