Henriqueta Lisboa: sobre a infância - Editora Peirópolis

Henriqueta Lisboa: sobre a infância

 

HENRIQUETA LISBOA E A INFÂNCIA

 

“Entre as motivações mais persistentes ao meu espírito, figura o tema da loucura, esse país estranho cujos habitantes se entregam de corpo e alma à liberdade e ao sonho. Aproximei-me de seus redutos através dos seguintes poemas: “Floripa”, “Do louco”, “As Ilhas Aleutas”, “Canção do berço vazio”, “A caudal no escuro”, “Ofélia”, “Do idiota”, “O excepcional”. Ensinou-me a observação da realidade que o louco levita, que o louco tem lábia e, acima de tudo, que o louco é sagrado.

Por sua vez a infância, representação do evanescente, proporcionou-me há vários anos um livro de memória e contemplação: O menino poeta, enternecido depoimento de reações inerentes à meninice, espécie de biografia da infância em termos de experiência e empatia. Horas felizes foram aquelas em que voltei a respirar a atmosfera do primitivo e do ingênuo.”

(Henriqueta Lisboa, Vivência poética, p. 19; Henriqueta Lisboa – Obra completa, v. 3, p. 283)

O menino poeta (1943), que o tema da infância anunciara em certos poemas de Prisioneira da noite, difere dos nossos livros de versos para crianças. Estes, na sua maioria, querem ensinar. E do que em aparência é qualidade vem o seu grande defeito: sufocam a poesia com a preocupação didática. Em O menino poeta, ao contrário, o que há é só poesia. Nenhuma intenção moralizadora, nenhum rebaixamento do poema a veículo de noções que a criança deva aprender. Mergulha-se simplesmente numa atmosfera infantil de encantamento, em que o mundo aparece virgem como nos primeiros dias da criação. E isso já é educativo. A poesia educa na medida em que revela o belo, na medida em que proporciona nova visão do mundo. Ou, então, na medida em que enriquece a sensibilidade infantil, agindo sobre ela como age a música.”

(Ângela Vaz Leão, Henriqueta LisboaObra completa – v. 3, p. 508: Fortuna crítica)

 

“Infância, morte, imaginação, realidade, Deus e as dores do mundo: em torno disso Henriqueta Lisboa tece a sua arte poética. Uma fusão de mito e poesia. Uma busca insofrida do splendore para a celebração do transcendente e eterno, mas também uma redução do voo imagético pela contingência existencial.”

(Fábio Lucas, Henriqueta Lisboa – Obra completa – v. 3, p. 586: Fortuna crítica)

“Diga-se, de passagem, que Henriqueta Lisboa percorreu um caminho paralelo ao de Cecília Meireles, ambas nascidas em 1901. Singulariza-as do mesmo modo o empenho na implantação de uma literatura direcionada às crianças. Enquanto Cecília Meireles se tornou a primeira brasileira a criar uma biblioteca para o público infantil, Henriqueta Lisboa se fez pioneira na escrita de poemas para crianças fora da tradição moralista ou de cunho meramente pedagógico. Concebeu poemas de feição lúdica, como é o caso de “O menino poeta” e outros da mesma coleção, nos quais predomina o jogo de palavras. Deste modo, a composição se estrutura em torno da própria mensagem. O processo de comunicação não se destina à circulação da mensagem do emissor para o receptor, mas enfatiza a substancialidade da mensagem, começa e se esgota nessa, como numa função poética, nos termos da proposta de Roman Jakobson. Assim, os poemas de O menino poeta iniciam uma prática de poetização em que se explora de preferência o estrato fônico, relegando-se a segundo plano o estrato das representações ou as camadas de expressão emotiva ou referencial. Os exemplos de O menino poeta apontam precisamente para o prazer do texto, para a manifestação sonora e lúdica de cada poema.”

(Fábio Lucas, Henriqueta Lisboa – Obra completa – v. 3, p. 589: Fortuna crítica)

 

EM ENTREVISTA A ANGELO OSWALDO DE ARAÚJO SANTOS (1968)

Por que tem preferências por temas infantis em sua poética? Haveria influência da meninice ou são elementos recolhidos da infância em geral? Em contraste com isso, que significa a temática da morte e o aspecto místico de sua poesia?

HL – A infância é uma água cristalina que todo ser humano procura beber, ou na própria fonte, através do espelho evocativo, ou nas fontes que vão nascendo dia a dia. Por analogia, não sei bem quando me refiro ao meu reino encantado, ao mundo infantil de entorno ou àquilo que desponta e é tenro, sem as marcas da servidão. Não vejo contraste entre esse motivo e os outros a que você se reporta, senão sequência. Na ordem seguinte: após a infância, a criatura se vê densamente tomada de mistério – a natureza individual e a natureza cósmica. Então começa a vida interior e, simultaneamente, a de integração no real visível. O ser que reluta em aceitar as coisas como são procura superá-las na mística esperança de uma solução que seria o encontro de Deus. Depois, a ideia da morte, consequência fatal da vida, é o fogo em que nos consumimos minuto a minuto. É preciso dominar esta ideia, transfigurar este sentimento, colher ao menos uma flor à beira da sombria experiência. E, a meu ver, a arte é um ato de respirar.

(Henriqueta Lisboa – Obra completa – v. 3, p. 471: Entrevistas)

 

EM ENTREVISTA A JOSÉ AFRÂNIO MOREIRA DUARTE (1970)

Além de haver selecionado com êxito textos para a infância e a juventude, em O menino poeta, livro para adultos, consegue também encantar as crianças. Sendo assim, pensa em escrever alguma obra de literatura infantil?

HL – Poesia com destinatário não é de meu feitio. Talvez ainda escreva alguns versos com toque infantil, mas por simples coincidência, digamos, de levitação.

(Henriqueta Lisboa – Obra completa – v. 3, p. 474: Entrevistas)

 

EM ENTREVISTA A EDLA VAN STEEN (1984)

Você se incomodaria de falar da sua infância em Lambari? Um de seus versos diz “e volta sempre a infância com suas íntimas, fundas amarguras”.

HL – A leitura total do poema explicaria o motivo dessa queixa: a morte de uma irmãzinha e a tristeza que invadiu a casa geralmente alegre e barulhenta de uma família numerosa e unida. Apesar de extremamente sensível, tive infância normal. Minha mãe era muito imaginativa e cultivava as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade; meu pai, muito inteligente, reunia as quatro virtudes cardeais: justiça, prudência, temperança e fortaleza. Da escola primária conservo preciosas lembranças, principalmente da minha professora Helvina Xavier Moreira, que me despertou o gosto pela poesia, lendo com entusiasmo e fazendo-me decorar Raimundo Correia e Fagundes Varela. A esse tempo, o desenho me fazia vibrar, e o desejo de tocar violino me acalentava. Mas a leitura dos poetas prevalecia. Então comecei a contar sílabas, a buscar rimas, a valorizar o estudo da língua pátria, a rabiscar meus primeiros versos, aí pelos nove anos. Sem a menor pretensão, é claro. Simples exercício.

(Henriqueta Lisboa – Obra completa – v. 3, p. 480: Entrevistas)

 

De Convívio poético (1955)

INFÂNCIA E POESIA

Fala-se em poesia infantil. Porém não há poesia com destinatário. Assim como não há céu especial para crianças, tempestades especiais, mares, florestas para cada classe de seres humanos, fogo, terra, água e ar diferentes para cada criatura, ciência diferente, Deus diferente.

Como todas as grandes coisas verdadeiras, a poesia é uma só. Uma só coisa – vasta, profunda, total. Que subsiste através de rótulos, desconhece divisões, emerge de departamentos e escolhas. Que não se atém à capacidade ou incapacidade de apreensão alheia, nem sequer a necessidades outras que não a sua própria necessidade de existir. O que há e nos confunde, às vezes, em relação às coisas únicas, como a poesia, são circunstâncias fora de toda essencialidade, serviços, distrações, perigos, obtusidades e prognósticos.

Para o artista, no ato criador, não há senão a correspondência a uma verdade interior – imperiosa. Se a poesia da infância fosse o trigo e viesse o joio de mistura, seria então o caso de dizer-se: “Deixai crescer a cizânia até à colheita!” Nesse momento é que intervém o educador, com seus cabedais psicológicos, para tomar o material que o interessa; nesse momento, é que surge o moralista (muitas vezes o próprio poeta) para lançar às chamas o mau elemento; e chega o crítico para catalogar, distinguir, traçar limites: poesia maior ou menor, social ou individualista, interessada ou pura.

São composições e decomposições, através de jatos de luz, espelhos, balanças, termômetros e barômetros. Faina escrupulosa e indispensável da qual independe, porém, a poesia. Seria erro fundamental decidir-se o artista por um gênero do qual não participam suas entranhas.

Apesar da lucidez que o deve orientar, o artista não pode forjar o próprio temperamento; nem assumir compromissos pela sua poesia, a menos que o estado de iluminação já tenha atingido o ápice, e o ato de escrever seja apenas a consumação do já elaborado no cérebro e na carne. A poesia é como, na ordem do reino vegetal, a planta; não lhe é dado cantar a flor, porém, sim, florescer. E há coincidências miraculosas. Acontece que o poeta, em certa hora de sua vida, diante de uma felicidade inesperada, de uma deliciosa recordação, sente-se como criança; e também pode acontecer que, na reação contra alguma tremenda realidade, ele queira recuperar, pela força do pensamento reflexivo, a ingenuidade de outrora. Entrega-nos, então, o mais puro de sua alma, a poesia sem mácula, tenra como a própria infância, propícia aos pequeninos seres.

Pela educação de hoje, o poeta de amanhã poderá vir a ser o poeta das crianças: se o reino poético infantil for puro e livre, aumentam as probabilidades do aparecimento de uma poesia em que a dignidade e a graça se completem. A seiva que alimenta as raízes circulará nas frondes vindouras. Quase todos os teoristas da arte aproximam a poesia de um como estado de infância. De fato, que numerosos acordes na psicologia comparada do poeta e da criança! Reagem ambos contra o insolúvel por meio de metáforas. Em ambos, uma divinatória intuição compensa as deficiências do conhecimento. Chegam a perscrutar a ciência pela imaginação. Vivem pela imaginação.

Surge, a este passo, um problema de ordem pedagógica: deve-se, acaso, tolher a imaginação da criança? Porventura será a imaginação um obstáculo à felicidade, uma fonte de desequilíbrio? Encontro resposta autorizada em Chesterton, na sua autobiografia: “Costuma-se dizer que as imagens são ídolos e que os ídolos são bonecos. Contento-me com afirmar que nem sequer os bonecos são ídolos, senão imagens no verdadeiro sentido. A própria palavra imagem significa algo necessário para imaginação. Porém não por isso contrária à razão, não, nem sequer numa criança; pois que imaginação é quase o contrário de ilusão”.

Busquemos um exemplo para provar esta afirmativa: quando o índio da Polinésia, proibido de nomear as coisas que pertencem ao chefe, vê fogo ou luz na casa real, exclama: “O raio arde nas nuvens do céu”. O conhecimento da realidade é a substância mesma de sua metáfora. Não há ilusão, há troca de valores. Assim a imaginação, que tem como chave de ouro a metáfora, não representa uma fuga, mas uma libertação, com o seu poder de vencer tabus, ultrapassar horizontes, cristalizar o abstrato, circunscrever ao pequeno mundo dos sentidos a beleza universal, beber copos de liberdade.

É um jogo consciente e sério, em que o poeta se revela meio selvagem. Por seu turno, não são ingênuos os selvagens quando falam por símbolos. Nem tampouco as crianças, no cerimonial dos brinquedos. Contam que, em meio às festas de Natal, certa vez, disse uma criança a outra que Papai Noel eram os próprios pais… A que ouviu, delicada, nunca mais pôde esquecer o golpe moral intenso que no instante sofrera, não porque desconhecesse o segredo, mas porque este não deveria ser dito. Assim como a infância preserva lindamente a poesia, também a poesia pode preservar a infância através de todas as idades.

(Henriqueta Lisboa – Obra completa – v. 3, p. 59)

 

Conheça a obra O menino poeta
Leia a conferência da poeta chilena Gabriela Mistral, prêmio Nobel de literatura de 1945, sobre O menino poeta, de Henriqueta Lisboa.

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