Henriqueta Lisboa: poemas
Belo Horizonte bem querer
Uma cidade se levanta
do solo às nuvens.
De atalhos parte para avenidas.
Do caos se amolda à geometria:
triângulos quadriláteros círculos.
Uma cidade sobe dos prados
para o lombo das serras.
Destrói choupanas e constrói
arranha-céus.
Forma-se de colunas firmes
e fúlgidos vidros de sol.
Protege-se dos ventos e deixa
que a umidade a abandone.
Uma cidade é imperativo
a um tempo humano e desumano.
Palácios presídios
asfalto cavernas
elevados e subterrâneos
teia de virtudes e crimes.
Uma cidade é sinfonia
com ásperas dissonâncias.
É um ser total de osso e carne,
tem nervos, músculos e sangue:
o sangue de seus habitantes
os nervos de seus habitantes
a própria força e fraqueza.
Uma cidade segue o ritmo
ágil ou tosco de homens.
Fala pela voz de criaturas
imperfeitas e insatisfeitas.
Cresce das mãos dos operários
canta pelo timbre dos poetas
define-se no porte dos guias
espairece no afã dos atletas
explode na estridência das máquinas.
A expressão de uma cidade é múltipla.
A beleza de uma cidade é instável.
Sua grandeza é limitada
à fronteira mesma das cousas.
Uma cidade se assemelha às outras
porém se a amamos é única:
tem a forma de um coração
traz nosso aroma predileto
é a paina do travesseiro
em que repousa a nossa fonte.
Belo Horizonte bem querer.
(Belo Horizonte bem querer – 1972)
Brasília
Eu vi o sol de Brasília
à hora do nascer do sol:
bloco de topázio em prismas
alçado pelo anzol do céu
ali na faixa do horizonte
à altura de minhas mãos.
O sol que sempre vai nascer
às mesmas horas de alvorada
com a mesma ardência o mesmo adejo
a mesma graça de alvorada
quando meus olhos forem cegos.
Eu vi a lua de Brasília
flutuando no aquário escuro.
Nenhuma lua vi maior
nem mais límpida em longitude
nem mais redonda em corola.
Era um jorrar de lua a flux
em águas vidros azulejos
mármores espaço à frente
relvas gramíneas buritis.
Uma lua vinda de outrora
que se perdera e se encontra
em novo giro agora fixo
para os amores que despontam.
Vi a galáxia de Brasília
pairando sobre a flor de pedra
da catedral em ofertório.
Foi numa noite de mistério.
Os astros formavam códigos
senhas algarismos e siglas,
projetavam perfis
de Profeta Patriarca
Inventor Arquiteto
Construtor Operário Artista.
A galáxia refluía à fonte:
são os astros de humana estirpe
entressonhados noite a noite
que coroam Brasília.
(Miradouro – 1976)
Caixinha de música
Pipa pinga
pinto pia.
Chuva clara
como o dia
— de cristal.
Passarinhos
campainhas
colherinhas
de metal.
Tamborila
tamborila
uma goteira
na lata.
Está visto
que é só isto,
não preciso
de mais nada.
(O menino poeta – 1943)
Canoa
Alto-mar uma canoa
sozinha navega.
Alto-mar uma canoa
sem remo nem vela.
Alto-mar uma canoa
com toda a coragem.
Alto-mar uma canoa
na primeira viagem.
Alto-mar uma canoa
procurando estrela.
Alto-mar uma canoa
não sabe o que espera.
(A face lívida – 1945)
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