Henriqueta Lisboa e Guimarães Rosa - Editora Peirópolis

Henriqueta Lisboa e Guimarães Rosa

Henriqueta Lisboa dedicou-se também a uma atividade crítica consistente. “Na análise […] de obras, Henriqueta Lisboa ressalta o que os [os autores] fez artistas e onde, por isso, se realizaram humanos, como pessoalmente aspira realizar-se”, como afirma padre Lauro Palú e como fazem vislumbrar os seus textos em Convívio poético (1955), Vigília poética (1968) e Vivência poética (1979),  livros de ensaios pouco conhecidos do público e agora publicados no terceiro volume de Henriqueta Lisboa – Obra completa.

Na carta acima e no ensaio abaixo, sobre a obra de Guimarães Rosa, transluz Henriqueta ensaísta, crítica, humana.

 

O MOTIVO INFANTIL NA OBRA DE GUIMARÃES ROSA

E por que terei escolhido o motivo infantil para tecer considerações em torno da obra de Guimarães Rosa? Há temas mais assoberbantes e mais absorventes nesta “selva selvaggia”: a essência metafísica, a mística repartida entre Deus e o demônio, a consciência do bem e do mal, a dicotomia medo–coragem, o amor em multiformes aspectos, o deslumbramento da natureza – fauna e flora –, a integração do regional no universal, isto sem falar nas inovações da linguagem, no emprego das metáforas, no domínio estilístico.

Parece-me, todavia, que na realização dessa obra monumental e complexa, a infância assume, quer na qualidade de tema, quer como presença ou vivência, importância liminar e até fundamental.

À base da criação artística existe sempre um acervo de emoções cujo índice é o próprio temperamento do indivíduo. Como se sabe, essas emoções se revelam por meio de imagens, elementos verbais, exterioridades rítmicas, incidências que resultam de uma determinada visão do mundo.

Assim, esta visão do mundo, que, na alma do artista, é de ordem subjetiva, torna-se objetiva a partir de sua obra, como se fosse um espelho. Pois bem: a visão do mundo de Guimarães Rosa, traída a cada passo pelo impetuoso dinamismo que preside a forma poética, revela a presença constante e pertinaz da infância. O menino de “Campo geral” reponta com surpreendente vitalidade em tudo quanto escreve o nosso autor.

Há uma aura de tresloucada candura ao longo de suas páginas as mais realistas. A alegria inexplicável das coisas amanhecentes, a descoberta da natureza, o despontar do pensamento através de palavras anteriores à lógica, a trepidação dos diálogos, o fluxo e refluxo dos monólogos, o jogo das metáforas, a própria filosofia matreira dos primitivos, personagens de sua dileção, os quais devem o que pensam ao que veem, tocam e degustam, as fontes ocultas no magma em potencial, o bárbaro e o primevo, tudo isso remonta à infância do autor, tudo isso demonstra a sua faculdade de prolongar a infância.

Sua intuição amorosa, seu gosto pela vida e pela renovação da vida através da arte tomada como atividade lúcida, fazem com que ele se assemelhe às crianças e aos primitivos, seres que se agitam e se movimentam sem motivação exata e sem interesse consciente.

O escritor parece divertir-se e, todavia, comover-se com seus mitos, tanto quanto o menino com seus brinquedos e o primitivo com suas superstições, ao considerá-los objetos reais dentro do reino em que vivem, o sobrenatural. Tal como eles, com alegria e unção, o poeta ultrapassa os limites da realidade em seus raptos criadores.

O “eu profundo” de Rosa, o eu confuso, inexplicável e original de que fala Bergson, e não apenas o eu superficial, claro, impessoal, formado pela experiência, é de natureza infantil, instintiva, emotiva, manifestando-se, por isso mesmo, o seu gênio, com radiante espontaneidade.

Essa tese não invalida a afirmação, aparentemente paradoxal, de que o escritor agencia como poeta uma vasta e fecunda erudição. Mas é que esta erudição precede a obra; com ela se preparou para as lides literárias, assim como o atleta prepara os músculos antes de penetrar na arena: eis o que lhe faculta a eclosão dos estados anímicos.

A tese não impede tampouco a afirmação de que o espírito desse poeta é de ordem metafísica. Porque o instinto metafísico, o mais agudamente inteligente dos instintos humanos, manifesta-se desde tenros anos.

A irrequieta curiosidade do menino leva-o a desmontar e a desmembrar brinquedos para saber como são por dentro. Na ânsia de conhecer o princípio e o fim das coisas, a criança analisa, decompõe e finalmente recompõe as partes de um todo em síntese, muitas vezes artísticas. Este é o caso em apreço.

A estranheza diante do universo, como se cada dia fosse um primeiro dia, perfaz e complementa a personalidade de Rosa, pressionando magicamente a sua obra, insuflando-lhe aquela força de ímã a que se refere Platão, a “amabilis insania” de Horácio, a “loucura passageira” segundo Schiller. Rosa é um criador delirante, suponho, exatamente porque possui o sentimento da infância. O que nem sempre acontece com grandes criadores, por exemplo, com o nosso admirável e grave Machado de Assis; ou, ainda, com Graciliano Ramos, que nos deixou um livro intitulado Infância, magistral em todo sentido mas tocado daquela severidade enxuta de adulto que é seu traço característico.

O escritor brasileiro com quem Rosa se harmoniza, também a esse aspecto, é Mário de Andrade. A alegria de viver e de criar, a faculdade de expandir-se no jorro abundante das palavras, o dinamismo estilístico levado às raias da ingenuidade, certas expressões de mato verde, são peculiares aos dois.

O autor de “Miguilim” se assemelha, de certo modo, a Chesterton, o homem que fazia questão de chegar até à velhice sem se aborrecer. E por isso cultivava com extremado carinho, voluntariamente e até mesmo grotescamente, o dom de prolongar a infância, inventando personagens extravagantes como aquele Smith que promovia piqueniques no telhado, para escândalo da turma dos sorumbáticos. Como se vê, porém, o escritor inglês possui métodos diferentes, mais agressivos; busca o prolongamento da infância por determinação e convicção de que, para entrar no reino do céu, o homem precisa recuperar a simplicidade perdida. Ele age como cristão, inspira-se na ética, deseja propagá-la. Rosa identifica-se quase inconscientemente com o mundo que o inspira e no qual mergulha por completo, por ser este o seu próprio mundo, o da iniciação, o do perpétuo nascimento das coisas.

Diz-se que “o ato instintivo é uma espécie de concatenação regular que não é interrompida, e os movimentos sucedem os movimentos, evocados uns pelos outros”. Pois bem: podemos afirmar que o estilo de Rosa é um ato instintivo. O que não impede – escusa repetir – sua capacidade seletiva. Em estudo sobre Grande sertão: veredas escreveu, com a habitual clarividência, Casais Monteiro: “Primitivo e elaborado – estes dois conceitos não são de modo algum antitéticos. A sua fala é emanação de sua natureza em luta com um instrumento inadequado precisamente pelos seus elementos lógicos”.

Em verdade, o que surge à tona de seus livros é um borbulhar de formas buscadas em fontes aurorais, coisas prematuras, antecipadas ao uso, à base da noção do eu físico do escritor, vale dizer, de sua cenestesia.

Como ser instintivo, ele é, evidentemente, emotivo. Não caminha a marcha natural do espírito, não vai do sincretismo para a análise e desta para a síntese: vai e volta como sem rumo, à feição de rio a traçar curvas e oblíquas, levado por energia recôndita, obscura porém eficaz e sempre mais caudaloso no seu evoluir.

“A emoção tende a perpetuar-se: quanto mais se foge, mais medo se tem.” É o que diz uma corrente existencialista. Nesse caso se explica a emotividade crescente e ascendente de Guimarães Rosa, à medida que se acumulam as suas expressões. Escritor apaixonadamente levado pela palavra ao contexto, vive a aventura de uma linguagem paroxística, a desenovelar-se em redemoinho. Não é em vão que uma palavra – nonada – e outra palavra – travessia – assinalam o começo e o desenlace de seu grande romance.

Entretanto é de notar-se: “o complexo psíquico adquirido sobre as percepções que se acham na consciência” a que se refere Dilthey, ao fazer a distinção entre a loucura e o gênio, aqui funciona com lucidez. O poeta encontra na palavra o princípio e o fim das revelações. Turbulentas e abundantes, suas palavras acusam uma riqueza psicológica digna de maior estudo. Dificilmente lograríamos separar, para análise, os valores do verbo e os de seu significado. A invenção de Rosa é o esquema total, dentro do seu poder de transferir e aproveitar experiências e sentimentos de ordem afetiva, de emaranhar fatos e sensações, de recordar eventos longínquos ou sabiamente colocados à distância.

“Na própria precisão com que outras passagens lembradas se oferecem, de entre impressões confusas, talvez se agite a maligna astúcia da porção escura de nós mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade.” Aí está um desabafo pensante em meio à nebulosidade constelada de “Nenhum, nenhuma”, página em que se reproduz uma das mais fugidias reminiscências do Menino.

Gostaria mesmo o nosso escritor de recordar com maior nitidez tudo quanto enriqueceu sua infância, ou essa queixa representa apenas um recurso de evasão e despistamento para enredar a narrativa?

Também Chesterton se impressionava com os processos da memória. Eis o que diz ele na Autobiografia: “Em verdade, as coisas que recordamos são as que olvidamos. Isto é, quando nos visita a memória repentina e aguda, perfurando a proteção do olvido, aparece, durante alguns instantes, exatamente como era. Se pensarmos nisso amiúde, suas partes essenciais permanecem verdadeiras porém se transformam, cada vez mais, em nossa própria recordação da coisa, em lugar de transformar-se na coisa em si”. Ainda mais: “Podemos fazer a prova do estado de espírito infantil, pensando não só no que ele continha mas também no que poderia haver contido”.

Numa de suas crônicas, alude Mário de Andrade a preocupação idêntica: “As memórias são fragílimas, degradantes e sintéticas, pra que possam nos dar a realidade que passou tão complexa e intraduzível. Na verdade o que a gente faz é povoar a memória de assombrações exageradas. Estes sonhos de acordado, poderosamente revestidos de palavras, se projetam da memória para os sentidos, e dos sentidos para o exterior, mentindo cada vez mais”.

Esta é a grande margem para a imaginação criadora. De alguns vagos elementos pode renascer algo mais forte do que aquilo que desapareceu; pode surgir a maravilha, palavra tão cara ao autor de Corpo de baile que foi por ele transformada em “vilhamara”, num alvitre pueril.

O conto-poema “Nenhum, nenhuma”, construído de forma revolucionária, tramado de névoa com uma ou outra lucilação, termina de modo convenientemente realista, em corte insípido, como se fosse o término da própria infância subitamente arrancada ao seu reino: “Nunca mais soube nada do Moço, nem quem era, vindo junto comigo. Reparei em meu pai, que tinha bigodes”. Depois do que vem o choro de raiva, os gritos de revolta do Menino, porque os outros já não sabiam de nada… Tanto é verdade que cada ser humano é uma ilha. Foi talvez esta uma primeira experiência da solidão, do sentimento da solidão.

Tratamento diverso mereceu o romancinho “Campo geral”, que ultimamente passou a ter o título de “Miguilim”. Nessa biografia da infância, em sentido genérico, em que há uma boa dose de transferência, quer dizer, de evocações colhidas aqui e acolá para efeito de conjunto e tessitura da fábula, os traços autobiográficos são nítidos.

Se observarmos o comportamento de Miguilim em diferentes ensejos, seus sentimentos psíquicos, intuições e reações, experiências afetivas, reflexões mentais, problemas morais, deslumbramento diante da natureza, apreensiva sensibilidade, fascinação pelas sete cores, desejo de compreender e ser compreendido, pudor no sofrimento, faculdade de contenção, fantasias despautadas, chegamos à conclusão tranquila de que se trata de um menino poeta.

Com oito anos, já gostava de inventar “estórias da cabeça dele mesmo”; sonhava “fazer estórias, tudo com um viver limpo, novo, de consolo”. Era delicado: “a alma dele temia gritos”; tinha “nojo das pessoas grandes” que matavam tatu por judiação. Começava a sentir “uma saudade de não sei que que é”. Pressentia “a diferença toda das coisas da vida”. Era tímido, “não tinha vontade de crescer”. E logo orgulhoso: “ser menino – a gente não valia para querer mandar coisa nenhuma”. Bastante orgulhoso, de acordo com a opinião paterna: “menino que despreza os outros e se dá muitos penachos”. Feixe de nervos, supersticiosamente marcava data para morrer. Magoava-se com facilidade: “por que era que um bicho ou uma pessoa não pagavam sempre amor-com-amor, de amizade de outro?” Com agudo senso moral observava em momento de dura provação: “A coisa mais difícil que tinha era a gente poder saber fazer tudo certo, para os outros não ralharem, não quererem castigar”.

Tal pensamento se torna obsessivo; passa a perguntar sucessivamente aos que o rodeiam, em primeiro lugar ao irmãozinho predileto: “Dito, como é que a gente sabe certo como não deve de fazer alguma coisa, mesmo os outros não estando vendo?” À empregada: “Rosa, quando é que a gente sabe que uma coisa que vai não fazer é malfeito?” Ao empregado: “Vaqueiro Jé, malfeito como é, que a gente se sabe?”.

Nenhuma resposta o ajudaria no difícil transe de resolver se entregava ou não o bilhete cuja gravidade não podia aquilatar mas já vislumbrava. Nenhuma resposta o ajudaria senão a da própria consciência de sensitivo, por isso mesmo precoce.

A emocionante obra-prima que é todo o romancinho atinge nesta passagem uma grandeza estranha, tanto mais delicada quanto mais densa. Insone dentro da noite, a de muitos medos, o menino sofre sem poder dizer a ninguém a causa de seu sofrimento por uma questão de honra. É a luta entre o dever e a amizade, o gosto de ser dócil e o desgosto de praticar o proibido, entre o bem e o mal, forças todavia ainda obscuras para o seu débil conhecimento da vida. Ensaia várias hipóteses de evasiva e fuga de si mesmo. Na hora decisiva, chora. Mas cumpre o que era para ele uma imposição moral.

Neste dramático transe de que eventualmente o menino poderia sair vencido ou vitorioso, se faz patente uma linha de caráter, dotado de escrúpulos. Ganha a partida, “Miguilim chorava um resto e ria, seguindo seu caminhinho […] andava aligeirado, desesfogueado, não carecia mais de pensar!”.

Vem depois a fatalidade, a hora irreversível da tragédia, a morte do irmãozinho admirado e querido. Entrega-se aos soluços convulsivos, às “lágrimas quentes, maiores do que os olhos”. Mas não deixa de ser um espectador: observa o gesto materno afagando o pequenino morto: “O carinho da mão de Mãe segurando aquele pezinho do Dito era a coisa mais forte neste mundo”. Daí, “todos os dias que depois vieram, eram tempo de doer”.

Ao drama de ordem pessoal e à tragédia inelutável, segue-se o conflito com a força maior, representada pelo domínio paterno contra o qual se insurge o menino, ferido nos brios. A represália do pai é tremenda. Mas o menino que tinha mesmo “coisa de fogo”, e estava “nas tempestades”, não fica atrás na réplica. Pisa, quebra, arrebenta e arrasa ele próprio os seus últimos brinquedos em devastação total. Crescia de repente, era homem. (Como no conto “Nenhum, nenhuma”, o fim da infância, ou seu primeiro desengano, é assinalado com raivosa violência.)

Aos poucos, Miguilim vai adquirindo seus pequenos conceitos conformistas – a que nem os poetas escapam: “Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma”.

Chega afinal a experiência da separação. Vai-se deixar levar para longe da família, do Mutum, “lugar bonito entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte”. Miguilim é todo sentimento e ternura. Timidamente pede os óculos do doutor para ver melhor, o míope. “E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca do feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou, mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutum era bonito! Agora ele sabia.”

Aí estão os principais acontecimentos dessa obra de gênero indefinível em que persiste e sobrevive a infância pela intensidade com que se projetam os estados de alma do autor, pela animação de suas imagens, sutileza de sugestões, justeza de expressão.

Assim, por fenômeno de empatia, conduzidos a um mundo interior que já nos pertence, temos a sensação da infância dentro de uma absoluta verdade lírica.

Artista minucioso, Rosa apresenta esse ambiente em linguagem dútil, tenra, pitoresca e gentil, de que ressaltam os diminutivos. Além do nome de herói, Miguilim, à feição de outras tantas rimas para acarinhá-lo, há uma porção considerável de meiguices: “pertim, pelourim, sozim, papelim, espim, logarim, menorzim, ioioim, durim, xadrezim, direitim, barulhim, demonim, bruxolim, barbim, passarim, beijim”.

Esse processo estilístico de nivelamento com o estágio infantil não se repete no conto mágico de Primeiras estórias; “Campo geral” é vivência no passado; “Nenhum, nenhuma” é revivescência no presente. O primeiro é a plenitude de um capítulo da vida humana; o segundo, a restauração de um antigo estado lírico.

Marcel Proust saiu à procura do tempo perdido por influência de determinado aroma que voltou a perceber. É nos sentidos, notadamente no olfato, que se concentra Guimarães Rosa para lembrar-se: “O mais vivaz, persistente, e que fixa na evocação da gente o restante, é o da mesa, da escrivaninha, vermelha, da gaveta, sua madeira, matéria rica de qualidade: o cheiro, do qual nunca mais houve”. É o adulto que fala, sem dúvida, para que o mistério permaneça, e apenas tremulem as franjas, sem desvendarem o que está do outro lado. Não importa o que o Menino viu ou deixou de ver, mas o que ele pressentiu, imaginou, idealizou e aureolou, pelo condão de sua própria sensibilidade.

Aqui se comprova, talvez ainda mais fortemente, a marca da infância na personalidade do autor. “… houve o que há…”. Sente-se confuso: “Infância é coisa, coisa?”. Senão um artista plástico, vale dizer, sabendo dispor da palavra como elemento dimensional, procura transformar o abstrato em concreto, “as coisas mais ajudando”, nesse processo de “retrocedimento na tenebrosidade”. “Tenho de me recuperar, desdeslembrar-me, excogitar – que sei? – das camadas angustiosas do olvido.” Porém as coisas concretas, apenas tocadas, se desvanecem, vão-se tornando outra vez abstratas. E o adulto reconhece: “Então, o fato se dissolve. As lembranças são outras distâncias. Eram coisas que paravam já à beira de um grande sono”.

Voltemos por um momento a Chesterton:  “Há dois meios de estar em casa, disse, “um, permanecendo nela; outro partindo para a distância a fim de contemplá-la, voltar a ela”.

A primeira visão é realista; a segunda, idealista ou, melhor, super-realista. Porque as coisas do coração estão acima e não fora da realidade.

Classificam-se as duas páginas de Rosa nessa dupla situação: “Campo geral” dentro da órbita objetiva, “Nenhum, nenhuma” em esfera subjetiva. Divergem na substância e na estrutura. Uma trata de episódios encadeados que se relacionam entre si, esquematicamente; outra fica suspensa no ar entre suposições, reticências e devaneios, é mais fluência que forma. A exemplo, um trecho do conto de Primeiras estórias: “Tudo não demorou calado, tão fundamente, não existindo, enquanto viviam as pessoas capazes, quem sabe, de esclarecer onde estava e por onde andou o Menino, naqueles remotos, já peremptos anos? Só agora é que assoma, muito lento, o difícil clarão reminiscente, ao termo talvez de longuíssima viagem, vindo ferir-lhe a consciência. Só não chegam até nós, de outro modo, as estrelas”.

Em contraparte, o ambiente em que se move Miguilim é todo de clara perceptibilidade, elementar rusticidade, campo aberto, povoado de vida, criaturas primárias, paixões insofridas, bichos de mistura com gente a atenderem por nome próprio: Catita, Soprado, Floresto, Pingo-de-Ouro. O mundo da natureza visível, audível e palpável, direta e simples, com brenhas, pastos e águas. O mundo extrovertido e divertido de Seo Aristeu:

                  “Amarro fitas no raio,
                  formo as estrelas em par,
                  faço o inferno fechar porta,
                  dou cachaça ao sabiá…”

O outro reino, em que se esconde, ou se procura o Menino, é requintado, interiorista, respira mistério, levita na intemporalidade, mora ou pervaga numa estranha mansão em que os personagens, o Moço, a Moça, anonimamente simbolizam sonho, renúncia, amor sublimado. Trata-se, é bem de ver, da recorrência de uma primeira contemplação inefável, de categoria intimista.

Desenvolve-se esse poema, por sua vez, em dois planos simultâneos: o da narrativa em tênues pinceladas tom de cinza, e o do reflexivo em nítidas marcações que, ao contrário do que se podia supor, apagam ainda mais o que o tempo já desgastou.

Sim, os comentários marginais que, em outro clima ou separadamente do enredo, teriam incumbência explícita, e efeito lógico, agem e funcionam como expectativa, ansiedade, insistência, angústia, desânimo: técnica admirável, de perfeita eficiência para traduzir certo estado psíquico a que chamamos nostalgia, aliado a um longo estado metafísico sem nome, além do tempo, o êxtase – quem sabe?

Encontram-se ao longo da obra de Rosa outros muitos momentos em que reaparece o Menino ou surgem novos meninos e meninas. Porém nas páginas a que me refiro, as de maior autenticidade e profundidade, se resume o essencial. Reunidos o cândido Miguilim e o Menino saudoso, surpreende-se, em síntese, toda uma extraordinária sensibilidade poética.

 

(Henriqueta Lisboa – Obra completa – v. 3, p. 155)

 

 

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