Guardião da memória dos Sateré-Mawé - Editora Peirópolis

Guardião da memória dos Sateré-Mawé

Yaguarê Yamã nasceu no dia 3 de outubro de 1973, na aldeia Yãbetué, no município de Nova Olinda do Norte (AM), região dos índios maraguás. Sua mãe era maraguá e seu pai era sateré-mawé, de modo que ele pertence a esses dois povos. Depois de passar uma infância de muito contato com a natureza, nadando em rios e comendo frutas no pé, Yaguarê mudou-se para Parintins, onde começou os seus estudos formais e aprendeu a falar português. Mais tarde, ganhou uma bolsa de estudos e foi cursar a faculdade de Geografia em São Paulo. Sofreu muito com o clima e a solidão na capital paulista. Vendo se sozinho, passou a freqüentar a internet, onde conheceu Renata, uma amiga internauta que acabou por se tornar sua esposa. Juntos, eles foram morar no Estado natal de Yaguarê, que nessa época já começa a escrever seus primeiros livros. Sendo filho de um contador de histórias nato, herdou o dom de contar e também de descrever com grande sensibilidade as histórias, as lendas e a cosmovisão de sua cultura. Seu livro Sehaypóri: o Livro Sagrado do Povo Sateré-Mawé foi um dos cinco títulos brasileiros escolhidos em 2008 para integrar o catálogo White Ravens, da Internationale Jugendbibliothek ? a maior biblioteca de literatura infantil e juvenil do mundo (Munique, Alemanha) ?, que revela os livros selecionados da produção mundial de literatura infantil e juvenil na Feira de Bolonha.

Raízes de um povo

Então, a minha mãe nasceu em Paraná do Limão, o nome dela é Marita, e o meu pai é sateré-mawé com mistura maraguá também, e nasceu no Rio Andirá. Ele andou por lá, por aquelas bandas, conheceu a minha mãe, se casaram. A minha mãe era bastante nova quando se casou com meu pai. Saíram de lá e, em busca de uma nova terra para os maraguás, porque até então os maraguás estavam sem terra, meu pai e minha mãe saíram de lá. Junto com outros familiares, fizeram uma caravana em busca de um novo território e foram para a região de Nova Olinda do Norte. Lá criaram a sua própria área, um território indígena maraguá, que foi reconhecido recentemente, mas ainda está com problema de demarcação.

E a minha infância foi cheia de aventuras. O que mais a gente fazia era ir para a floresta e fazer nossas aventuras mirins. A gente saía, um monte de curuminzinho andando no mato, entrava na floresta e ia fazendo aventuras, imaginando animais fantásticos, procurando o Reino da Cobra Grande. Eu comecei a estudar quando tinha uns 11 anos, lá em Parintins. Passei a minha infância na aldeia até uns 11 anos. Depois que meu irmãozinho caçula faleceu, por desgosto, por tristeza, o meu pai teve a idéia da gente viajar, de ir para as terras de uns parentes.

E fomos para Parintins, onde eu comecei a estudar. Na aldeia, a nossa escola era a natureza, mas essa questão de aprender a escrever e a ler o Português foi lá em Parintins. Era a segunda vez que ia para Parintins. Lembro que, quando chegamos na primeira vez, era umas 6, 7 horas da noite, eu nunca tinha visto aquela quantidade de luzes! Aquilo era um mundo novo para mim, foi uma coisa que me marcou. Por exemplo: aprender a ler foi uma coisa… Meu Deus, você não sabe nem a língua! Quanto mais aprender a ler, e é uma dificuldade, e demorei, demorei, mas aprendi assim mesmo. E tudo é diferente mesmo, não tem nada a ver com aquilo que eu conhecia, o ambiente, é um outro mundo. E os livros? Quando aprendi a ler, eu comecei a gostar dos livros, toda hora eu estava lendo, querendo saber das coisas, aprendendo. É muito gostoso, porque a gente conhece um universo inteiro e eu acho que foi dessa maneira que me ajudou a expandir o meu sonho, o meu pensamento a respeito de tudo.

De Parintins para São Paulo: casamentos e livros

Depois que terminei o colégio em Parintins, fui para São Paulo. Foi uma coisa complicada! Imagine a primeira vez que eu andava de avião, e lá da janela, e o meu irmão disse assim: ?Olhe, tu vai para lá e talvez tu nunca mais olhe essa floresta. Trate de olhar essa floresta aqui, porque eu acho que lá é tudo uma selva de pedra. Então trate de olhar essa aqui, porque é a última vez que tu vai olhar!? Aí vem aquele sentimento, aquela dor, do ambiente que a gente mais gosta, sair assim em busca de um sonho. Aí eu entrando no avião e lembrando: ?Poxa , talvez eu nunca mais veja essa cena.?

Em São Paulo, fiz a faculdade de geografia, que é outra experiência muito invocada. É difícil achar indígena na faculdade. Minha relação com os meus colegas era muito boa, eles me ajudavam bastante, todo mundo estava querendo saber o que eu precisava, e era bom, eu tive muito carinho por parte deles, pelos meus professores também, apesar de eu não entender muitas coisas que eles falavam. Na faculdade foi muito bom, já tinha iniciado a minha carreira de escritor e o lugar que eu mais gostava de freqüentar era a biblioteca, principalmente quando falava de coisas de 1800 e tantos, quando falava da Amazônia, daqueles pesquisadores, viajantes europeus que passavam por lá. Aí me lembrava que eles passaram próximo de onde eu morava e aquelas coisas todas, me lembrava aquele tempo de criança…

Mas eu me sentia muito sozinho, andava muitas vezes sozinho por aí porque não tinha o que fazer. Um dia alguém disse assim: ?Olha, eu instalei internet para ti! Tu quer internet? Para conhecer as coisas, tem que ter internet!? Eu não ligava para isso, mas um dia eu acessei a internet e comecei a freqüentar sala de bate-papo. Achava estranho esse negócio de conversar com as pessoas sem saber quem é… Mas eu acessei novamente e lá pelo quinto dia eu já estava mesmo gostando do negócio. Aí veio uma pessoa chamada Renata conversar comigo, e a gente teve a idéia de trocar o telefone. No outro dia, eu ligo para ela, né: ?Ah, tu é aquele índio, é?? Eu disse: ?É, eu sou.? ?Ah, tá!? Aí fomos conversando, e a gente teve coragem de se conhecer pessoalmente, combinamos de nos encontrarmos lá no Metrô Anhangabaú. Nossa, como eu estava nervoso para conhecê-la. Mas aí eu fui. Passados uns três dias, ela disse que estava disposta a namorar comigo. Acabamos casando! E um dia eu perguntei para ela se ela gostava realmente de floresta, de mato, essas coisas. Ela disse que gostava, então tá bom: ?Você está pronta para ir?? Prontamente ela aceitou e foi embora comigo. Voltei pra minha terra.

Mas aí eu escrevi meu primeiro livro, e o nome dele é O Puratig ? Remo Sagrado, é a história de uma escolha, uma história dos sateré-mawé. Nós acreditamos que existem dois remos sagrados de uma altura de um metro e meio, onde estão contidas todas as histórias tradicionais de nosso povo, desde o início do mundo até uma certa época. Mas a nossa literatura, tradicionalmente, é oral, e no Puratig está escrito em forma de grafismo. Nem todo mundo pode ver o remo, é o Remo Sagrado, ele é guardado e bem guardado. Só as pessoas mais especiais é que podem ver o Remo Sagrado. E as pessoas especiais, no modo de ver da gente, são aqueles que realmente merecem, que têm um comportamento bom, que têm a personalidade, o caráter, o que já desenvolveu em prol do povo, pessoas realmente que lutam pela causa indígena, essas pessoas podem ver.

A lenda do guaraná

O que eu espero com meus livros é que as pessoas gostem mais da nossa cultura, não só a cultura sateré-mawé, mas a cultura indígena em geral. Nós indígenas temos capacidade de escrever e de fazer a nossa própria história, ou seja, de escrever por nós mesmos e abrir caminho para mostrar para o povo da cidade o nosso povo, a importância da nossa ajuda, de compartilhar o que nós temos de melhor nesse universo cultural. Nossa cultura também é bonita e é esse pensamento que eu tenho: mostrar, para que ajude as pessoas a se conscientizarem de que o nosso povo também tem valor, a nossa raça tem valor e deve ser respeitada. E queremos nos fazer conhecidos nesse universo literário.

Vou contar, então, uma de nossas histórias: a lenda do guaraná, que é um fruto nativo da minha terra e que os sateré-mawé consomem muito, até para rituais. Bom, o guaraná é uma palavra, em sateré chama-se waraná e em maraguá chama-se guaraná. Guaraná é uma palavra maraguá que significa ?parecido gente?, pela lembrança do olho dele. Dizem os antigos que os animais falavam como gente, como pessoas, e não existia gente ainda, não eram criadas as pessoas, existiam apenas três irmãos, só que não eram gente, eram semi-humanos, parecido com gente. No início eram dois homens e uma mulher, o nome do primeiro é Yakumã, o outro é Ukumã?wató, e a menina, a moça, se chamava Anhyã-muasawê. Era uma moça muito bonita, linda, e todos os animais gostariam de namorar com ela, mas só que não era permitido por que os dois irmãos eram muito ciumentos e ninguém podia chegar perto dela para conversar. Num dia, numa conversa entre os animais, a cobra disse assim: ?Olha, pessoal, eu vou conquistar Anhyã-muasawê e vou casar com ela!? Aí todo mundo achou um absurdo, porque era impossível, os dois irmãos estavam todo o tempo lá, eram muito ciumentos e não deixavam ela sair para longe. Mas lá um dia a Anhyã-muasawê foi passear pela floresta e, nesse momento, a cobrinha que sabia onde ela ia andar ficou lá bem pertinho esperando ela passar, e antes de ela passar, a cobrinha ficou bem no meio do caminho, se pôs bem no meio do caminho. Quando a Anhyã-muasawê passou por cima dela, aí ela rapidamente tocou no calcanhar de Anhyã-muasawê e a partir desse momento ela ficou grávida. Naquele tempo não precisava, só esse gesto fazia a gravidez. Aí ela ficou grávida e apareceu grávida na casa dela, e os irmãos dela, que não gostaram nem um pouco, quiseram saber quem era o pai e descobriram que o pai era a cobra. Ficaram muito zangados, foram para a casa da cobra, despedaçaram a cobra, voltaram lá para a moça e mandaram ela tirar o bebê, ela não quis tirar de jeito nenhum, então eles mandaram ela ir embora e ela foi embora, expulsaram ela do paraíso, nós chamamos de Nusokén. E ela teve o nenê. Era um menino e ela deu o nome de Kahu?ê, e esse menino cresceu ouvindo as histórias da mãe dele. Soube que lá no paraíso tinha a mais bela árvore e a mais gostosa fruta, e ele queria comer: se chamava castanheira, que dava castanha. A mãe proibiu por causa dos irmãos bravos que ela tinha. Ele ainda entrou uma vez, mas foi denunciado pelos vigias. Da segunda vez, quando o menino bem alegremente ia descendo, os guardas, mais que depressa, passaram a cordinha no pescoço do menino e o menino morreu. No grito que ele deu, a mãe dele ouviu lá longe e saiu correndo atrás, correu, correu e, quando chegou, viu o menino morto no chão com o pescoço cortado e ela não pode mais fazer nada. Ela olhou e muito triste ela disse assim: ?Meu filho, os tios de você acharam que iam parar com a tua existência assim que te matassem, mas eles estão muito enganados, porque a partir da tua morte é que vai acontecer o grande bem para toda a humanidade!?, aí ela foi, lavou o corpo da criança todinho com ervas medicinais ? ela era uma pajé ? lavou bem lavado e disse o seguinte: ?De agora em diante, meu filho, tu vai ser o Tuxaua dos sateré-mawé, ou seja, tu vai ser o melhor de todos, de tudo que existe na natureza?. E falando isso, dizendo essas profecias, ela pegou o olho esquerdo do menino e foi plantar. Só que no lugar onde ela plantou era uma região de terra barrenta, e ela esperou nascer. Nasceu uma árvore, um arbusto. Ela esperou aquela planta crescer e, quando a planta cresceu, ela deu fruto, mas quando ela foi provar o fruto, ele era ruim. Aí ela deu o nome de Guaraná-Hôp, que significa guaraná falso, o falso guaraná. Ela voltou para lá e dessa vez tirou o olho direito do menino, plantou em terra preta e esperou crescer. Quando cresceu, deu um fruto bonito, com os olhos do menino. Ela provou do fruto e disse: ?Esse é o guaraná verdadeiro, Waraná Sése. Esse guaraná vai dar e ser tudo de melhor que existe em toda floresta.? Foi assim dada a origem do guaraná.

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