Entrevista com Gabriela Romeu e Anita Prades, autoras de Continentes - Editora Peirópolis

Entrevista com Gabriela Romeu e Anita Prades, autoras de Continentes

Gabriela Romeu:

 

Peirópolis: Continentes fala da jornada de uma menina ao longo de um dia. Conta um pouco para a gente, Gabi, como foi traçar esse caminho?

Gabriela: A narrativa trata das aventuras e dos desafios cotidianos de uma menina pequena – saltar uma poça, cavar um túnel – no universo do quintal, esse verdadeiro campo de investigação das crianças, um lugar onde venho pesquisando nos últimos anos. Tracei um caminho a partir da voz de uma narradora que acompanha o dia da menina em seu quintal-continente com olhos atentos para a poética das crianças, criando no percurso toda uma geografia própria, singular, tão real quanto imaginária ou tão imaginária quanto real. A narradora vê tudo de tão perto que às vezes dá para duvidar se não são a mesma pessoa. Quando o tema é o brincar, talvez inevitavelmente a gente espelhe a nossa própria experiência, esses vestígios no corpo e na memória. As crianças são sábias poietés, fazedoras de linguagens nesse espaço, onde tudo se transforma, cresce ou diminui, falam com uma língua cósmica, em uma interconectividade com todos os seres, viventes ou não.

 

P: Você também tem uma longa jornada por muitos quintais, de muitas infâncias. Podemos dizer que, de certa maneira, as crianças que conheceu e viu brincar por aí, estão contidas nesse poema narrativo? De quais maneiras?

G: Sim, há muitas infâncias percorrendo as páginas deste livro, inventando seus próprios continentes. Infâncias diversas, ou pluriversos, de lugares onde as crianças têm autoria e autonomia. São quintais, ruas de terra batida, aldeias, comunidades rurais, terrenos baldios, lugares onde as crianças fazem do chão um continente de reinvenção. Estão contidos na narrativa os gestos das crianças, os silêncios que cavam nesse brincar, descobertas e exercícios cotidianos e também capacidade plástica que elas têm em ampliar e transformar o espaço. Nas narrativas em que trago as experiências das crianças, como é o caso de Continentes, busco escrever com as imagens ofertadas pelas infâncias em diferentes territórios. São muitas, de meninas e meninos se inventando em caminhos por entre as raízes das mangueiras. A infância é território de oferendas, basta a gente saber sentar ao lado, ouvir e exercitar o brinquedo de olhar e contemplar, algo que aprendemos com as crianças.

 

P: Seu texto é muito imagético e muito sensorial. Muito imaginativo, também, como o próprio brincar. Como foi receber as ilustrações de Anita Prades? Fala um pouco para a gente como essa conversa se deu, entre as duas linguagens?

G: Um livro ilustrado se faz com muitas trocas, sabemos, e assim foi feito no percurso de Continentes. Anita Prades é uma leitora atenta, uma artista pesquisadora incrível e ainda uma parceira de escuta alargada. Depois de conversas e definido um caminho, os rafes e as ilustrações chegavam trazendo momentos de pirilampo piscando no peito. Se a voz narrativa verbal é em terceira pessoa, uma narradora que busca se aproximar da personagem menina e contar de seu dia, a narrativa visual assume uma lente subjetiva, em primeira pessoa, que escava novos mundos com o olhar, investiga um inventário de criaturas continentais, cria trajetos, vê de perto ou do alto. As ilustrações de Anita são carregadas de uma imaginação cósmica ou da mais pura cosmicidade que guarda a infância e, em diálogo com o texto, deixam transbordar fronteiras de um território só, misturam tempos, inventam outras geografias, assim como fazem as crianças.

P: Sua ficção tem uma voz muito própria, mas também remete a um certo modo de fazer literatura, que expande muito as fronteiras da imaginação. Quando escreve com o que ou quem costuma dialogar? O que alimenta a sua escrita?

G: Tenho tentado fazer alguns exercícios diferentes de escrita (em termos de gênero, de experimentação de linguagem ou da própria intenção). Em diversos dos meus textos não há um endereçamento tão direto do leitor, talvez seja possível dizer. Mas busco, sim, um endereçamento do sensível de cada um dos leitores ou das leitoras, que podem ser crianças, jovens ou adultos. E o sensível é casa da infância, por isso acredito que elas (a narrativa e as crianças) possam se encontrar. E o desejo principal é alcançar o coração sensível das infâncias, daquelas vividas no tempo de hoje e de corpo presente e daquelas que nos habitam e com as quais dialogamos a vida toda. O convite de Continentes (minha intenção, pelo menos) é que pessoas de diferentes idades reinventem sua própria geografia imaginária na leitura e que as crianças tenham a vontade de brincar depois de percorrer a narrativa visual que preza a cosmicidade filosófica das infâncias. Que as crianças possam experienciar em Continentes não só os territórios da imaginação, o que nem de longe é pouco, ainda mais nos dias de hoje, mas que possam viver a experiência da suspensão, que é da ordem da linguagem ou da poesia, e provoca que a gente mais sinta do que entenda.

Ler prosa poética e poesia, buscar espaços de silêncio e sobretudo contemplar as crianças e seus pluriversos são fontes importantes para livros como Continentes.

 

Gabriela Romeu nasceu em São Paulo e passou a infância em um bairro do ABC Paulista, onde as crianças dominavam as ruas, as praças, os quintais dos fundos das casas e também os tapetes da sala. Foi nos terrenos baldios que ela descobriu, em tampas perdidas, os escudos para as suas brincadeiras ou cavucou na terra, entre coisas esquecidas, esconderijos para alguns de seus segredos de menina. O mundo todo cabia naquele pedaço de chão, todo o seu continente, que guarda até hoje algumas de suas histórias de infância. Um lugar que a inspira a contar outras histórias, o que faz há mais de vinte anos, de muitos jeitos: em jornal, em filmes e exposições, no teatro e, principalmente, nos livros. Entre suas obras publicadas, estão Terra de cabinha – Pequeno inventário da vida de meninos e meninas do sertão (vencedor do 59º Prêmio Jabuti e premiado pela Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio), Irmãs da chuva (Prêmio FNLIJ – O Melhor para Criança), Diário das águas (Prêmio FNLIJ – Poesia) e Menininho (premiado pela Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio e finalista do Prêmio Jabuti).

 

Anita Prades:

Peirópolis: Neste livro, você traz ilustrações muito inventivas, subvertendo objetos do cotidiano, criando uma atmosfera próxima ao sonho, ao absurdo. Conta um pouco sobre seu processo neste livro? Como foi essa jornada?

Anita: Quando recebi o texto da Gabi, fiquei encantada com a maneira que ela nos conta sobre o desenrolar de um dia na vida de uma criança, encharcando as palavras com tanta poesia. Senti que seria um desafio – dos bons – dialogar com as muitas aberturas possíveis de sentidos imaginários presentes em um texto tão poroso. Tive a grata oportunidade de sentar com a Gabi e as editoras Renata e Lili para filosóficas e gostosas conversas, em que partilhamos referências diversas e colocamos nossas ideias possíveis na roda, em uma investigação circular ao redor do material tão vivo e instigante que pulsava do trabalho da Gabi. Fui para o ateliê, portanto, munida dessas valiosas confluências, em que, juntas, percebemos a prevalência da inventividade que tanto dialoga com os processos da imaginação na infância, subvertendo e recriando a realidade cotidiana. O processo, para mim, foi como um convite para a desamarrar meu imaginário sobre as representações das formas conhecidas, para brincar com outras cartografias possíveis, a partir do que vemos, tocamos, sentimos. A experiência passou a se tornar uma experimentação extremamente prazerosa, uma provocação para remar de volta para camadas muito profundas da infância. Sou muito feliz por ter participado da construção desse livro-continente, que generosamente me fez reencontrar com o meu próprio ofício como ilustradora.   

P: Como foi seu encontro com o texto da Gabi? Para onde ele te levou? O que ele deu? E o que lhe tirou?

A: Acho que a primeira leitura do texto da Gabi me tirou o chão dos pés! Me vi navegando em um continente novo e deslumbrante, onde me esbaldei de rio e soube silêncios. Eram terras desconhecidas, inexploradas, mas que, ao mesmo tempo, eu conseguia encontrar dentro de mim. Bem dentro desse paradoxo poético. Acho que texto da Gabi abre caminhos que cada um de nós pode percorrer de diferentes formas, e acho isso muito bonito.

 

P: Do seu ponto de vista, o que é importante considerar ao ler o livro ilustrado, que apresenta narrativas visuais e textuais tão amalgamadas?

A: Penso que é justamente nessas relações possíveis entre palavras e imagens que mora uma das particularidades mais interessantes dessa categoria, o livro ilustrado. Me encanta pensar nas aberturas entre os vãos das muitas interações possíveis entre essas duas linguagens narrativas distintas, especialmente quando entendemos que a ilustração não precisa estar necessariamente vinculada à uma interpretação literal do texto. Vejo o livro ilustrado como um campo de ampla experimentação artística, com espaços poéticos que convidam à uma experiência leitora ativa, em que curiosidade e imaginação são força motriz. É um tipo de livro que reconhece a importância das imagens na nossa sociedade, e que, diante do excesso de visualidade em que vivemos, nos convida a habitar uma espécie de silêncio em que possamos nos apropriar de narrativas visuais com mais consistência. 

 

P: Você tem uma filha pequena em casa. Como a relação tão próxima à infância se presentificou neste trabalho com Continentes?

A: Uma das coisas que mais me encanta é observar minha filha de 5 anos brincando sozinha. É super gostoso brincarmos juntas também, mas tem algo de um planetinha que ela adentra quando está brincando sozinha, e fica sussurrando suavemente os diálogos entre os personagens imaginados, que me desperta uma ternura imensa. Não precisa de muito… claro, às vezes são bonecas mesmo e ela tem diversos brinquedos representativos da realidade à sua disposição. Porém, às basta um fiapo, um papelzinho amassado, uma pedrinha, um potinho com água e terra, enfim, singelezas que já se tornam um continente inteiro e duradouro. Os processos de fabulação que ela desenvolve acontecem com muita naturalidade, e existe um certo estado brincante que a acompanha o dia inteiro. Certamente estar com ela me ajudou no movimento de reavivar a memória da criança em mim. Além do fato, é claro, de que a pequena é a primeira e principal instância julgadora da minha produção artística. Felizmente, até agora ela tem sido uma grande incentivadora de minha carreira como ilustradora!

Anita Prades nasceu e cresceu em São Paulo, e sua infância foi como um rio caudaloso e sem bordas. Depois de adulta, ela se vê sempre remando de volta para lá. Ela lembra dos pés na areia, das mãos na terra, das rodas de canções e histórias, dos jogos de bola, dos brinquedos de sucata e, principalmente, lembra do amor por ler, desenhar e interpretar, que se manifesta hoje em sua atuação como ilustradora, autora e atriz. A casa em que cresceu era também um ateliê das invenções inesgotáveis de seus pais artistas, habitada por alguns seres malucos e bichos de muitos olhos. Anita ilustrou vários livros e, em 2019, escreveu e ilustrou seu primeiro livro infantil autoral, Fio de rio (finalista do Concurso Internacional de Álbum Ilustrado Biblioteca Insular de Gran Canaria, com ilustrações selecionadas para a Bienal de Bratislava). Em 2023, lançou A casa dos vaga-lumes e A livreira viajante (ilustrações finalistas da Mostra de Ilustradores da Bologna Children’s Book Fair). Ela também colabora com o Instituto Emília, é pesquisadora na área de arte-educação e doutoranda no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

 

 

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