Entrevista com Tadeu Sarmento e Samuel Casal - Editora Peirópolis

Entrevista com Tadeu Sarmento e Samuel Casal

Entrevista com Tadeu Sarmento

Peirópolis: Tadeu, nos conte um pouco sobre a inspiração para escrever A viagem de Hanno e Ganda. A história nos parece tão inusitada, tão diferente…

Tadeu: Ah, isso foi bem bacana. Em 2019 eu estava pesquisando sobre o século XVII, lendo coisas, vendo documentários, pois estava escrevendo um romance que se passa nessa época, mais especificamente em 1646. Um romance para o público adulto, com quinhentas páginas e todo escrito em linguagem colonial. Um romance bem cabeçudo, como se diz, tão cabeçudo que está inédito até hoje, nenhuma editora se interessou em publicar (risos). Mas foi graças a ele que tive a oportunidade de escrever A viagem de Hanno e Ganda.

Quer dizer, foi pesquisando para ele que acabei conhecendo esse fato histórico maravilhoso, sobre um rei em Portugal que em 1515 decide presentear o papa lá em Roma com um elefante, sem ter a mínima ideia do que fosse um, ou visto um único elefante na vida. Claro que isso só podia dar em confusão, como deu. E assim que tomei conhecimento da história, enxerguei ali um tema bem bacana para lidar em um livro para crianças e jovens: a diferença entre fato e ficção, verdade e fantasia, ciência e imaginação, poder monocrático e democracia. Tudo isso com animais falando, como uma fábula.

 

P: Você realizou muitas pesquisas para escrever a história? Conte um pouco sobre seu processo de escrita, pesquisa e criação.

T: Muitas pesquisas. E muita escrita e reescrita. De todo trabalho que envolve um livro, essa é a parte que mais gosto: pesquisar, depois escrever; depois pesquisar de novo e reescrever. É um imenso prazer para mim. É a hora em que mergulho completamente em um mundo só meu, mas que está sendo construído e ordenado para ser compartilhado com o outro, por uma necessidade de se comunicar com o outro. É um momento único, que não se repete nunca mais, pois com cada livro acontece de um jeito diferente. E com A viagem de Hanno e Ganda foi muito especial. Li muitos livros e bestiários espalhados pela internet. E li bastante Rudyard Kipling, para aprender sobre a tradição dos macacos-narradores. Li também uma edição ilustrada de A Origem das Espécies para me inspirar com a mágica curiosidade e o mágico amor de Darwin pelo mundo.

Mas minha fonte principal, sem dúvida algum, foi um bestiário medieval digitalizado e disponível na internet que compartilho com vocês agora:

https://bestiary.ca/primarysrc.htm

 

P: Falando nisso, você apresenta os bestiários para o jovem leitor, espécie de publicação bem distante do repertório atual e comum de leituras. Fale um pouco sobre esse tipo de livro e sobre o que pode haver de tão encantador nos bestiários para o jovem de hoje.

T: Ah, os bestiários são incríveis, são interessantíssimos. Primeiro que eram livros ou folhetos alegóricos que traziam e misturavam animais reais com animais imaginários, mitológicos, e o mais legal: sem que o leitor ou a leitora conseguissem saber a diferença. Segundo que  as gravuras desses animais eram absurdamente fascinantes e misturavam elementos entre si (cobras com asas, leões com cauda de serpente, cavalos com chifres e assim por diante).

Mas o principal encantamento dos bestiários você já citou na sua pergunta: a distância que separa as pessoas que liam os bestiários das pessoas de hoje. Séculos e séculos. Eram sociedades absolutamente diferentes. Mas com uma coisa em comum, que sobrevive até agora: o espírito humano, a curiosidade humana, os próprios defeitos da humanidade e a incrível capacidade que ela tem ou para melhorá-los ou para criar discursos melhores para justificá-los.  E o texto, as palavras, são a ponte que nos leva de volta a esse passado fantástico. E precisamos sempre visitar o passado se quisermos construir o futuro.

 

P: A história parte de um engano proposital, baseado no desconhecimento das espécies, quando uma imagem poderia muito bem ser trocada por outra. Há relações possíveis com o que vivemos hoje, no contexto da pós-verdade, em que crenças, fatos e fake News se embaralham tanto?

T: Com certeza – e o livro fala dessa questão nas entrelinhas. O problema maior que a confusão entre verdade e mentira, entre fato e fake news, causa, é a maneira como os governantes e poderosos utilizam essa confusão para dominar as pessoas. Nesse sentido, o livro não condena os bestiários, pelo contrário. O retrato que temos, em A viagem de Hanno e Ganda (e sem querer dizer muito para não dar spoiler) é a de um rei vaidoso e infantiloide, que utiliza as crenças cegas no bestiário para manter as pessoas entretidas na ignorância. Tudo para não reconhecer as próprias falhas.

O que não tem nada a ver com os bestiários. Os bestiários são fantásticos documentos de um tempo que utilizava a imaginação para inventar possibilidades a respeito de coisas que a ciência ainda não podia explicar. Ponto. Foi a invenção da imprensa de Gutenberg que popularizou os bestiários (assim como as redes sociais popularizaram as fake news) em uma época em que o método científico já estava conquistando espaço. Esse foi todo o embate. Mas os bestiários existem até hoje. São valiosas fontes de informações para todos que quiserem saber que tipo de relação já tivemos com o mundo. Uma relação na qual as categorias eram fluidas, e um homem poderia ter cabeça de touro, ou um leão ter a cabeça de uma águia. Um bestiário também se diferencia das fake News atuais no sentido de que estas estão para a mentira, enquanto aqueles estavam para o sonho.

 

P: Outras discussões interessantes que seu livro parece trazer são sobre o lugar da ciência e da imaginação; sobre o “progresso” que o conhecimento científico nos possibilita, mas também sobre o ponto em que estamos, como humanidade que se relaciona tão mal com a natureza. Comente um pouco para a gente sobre esses alcances que a história tem, por favor. Você tinha tudo isso em mente quando escreveu?

T: Não, não tinha tudo isso em mente. Já viu imagens de mineradores dentro de cavernas escuras, com aquela lâmpada presa no capacete? Escrever na maior parte do tempo é isso. Quando começamos, só vemos um pedaço da frente do caminho iluminado e, para iluminar mais, precisamos avançar mais. Ciência e imaginação são dois lados da mesma moeda, isso que aprendi depois de avançar mais, até o final de A viagem de Hanno e Ganda. Que ciência e imaginação são expressões do espírito criativo humano, com algumas diferenças. A principal delas pode ser retratada na “disputa” bestiários versus método científico: enquanto o método científico separou a natureza do homem que iria estudá-la, os bestiários, pelo contrário, consideravam o homem como parte dela. E mais que isso: os bestiários falam de um tempo onde havia uma comunhão entre nós, o meio ambiente e os animais, onde tínhamos um outro tipo de relação, mais harmoniosa e menos predatória.

Isto é, apesar de todas as coisas bacanas que a ciência nos deu, essa ideia da separação do homem da natureza é a causa de tudo que estamos vendo hoje em dia. Falo da emergência climática e da destruição do meio ambiente. Não estamos indo por um caminho muito legal, basta olhar o que acontece hoje no Rio Grande do Sul, enchentes de proporções nunca vistas (maio de 2024). Talvez seja mesmo hora de voltarmos aos bestiários para aprender com eles sobre nossa própria sobrevivência. Voltarmos os olhos para sociedades vistas como “primitivas”, mas que são avançadas no melhor trato com o planeta, que sabem respeitar os outros seres, tão legítimos moradores do planeta Terra como pensamos que somos nós, mas estamos destruindo nossa casa e quando digo isso volto aos poderosos. A pequena porção de homens mais ricos do planeta com suas empresas e empreendimentos poluem e degradam mais que a enorme população pobre do planeta para quem faltam recursos básicos. É preciso responsabilizar os que mais poluem, matam e destroem.

O poema “Antropoceno” do Estive no fim do mundo e me lembrei de você, de Adriane Garcia, faz a denúncia mais contundente dessa calamidade que se aproxima. No final, de tanto denunciar o homem, a poeta afirma que “fica parecendo que eu odeio a humanidade”. Mas não é verdade. Nós amamos a humanidade no que ela tem de melhor. E queremos que ela sobreviva.

Ainda dá tempo!

 

Conheça o autor:

Tadeu Sarmento  nasceu em Recife em 4 de março de 1977, é casado e mora em Belo Horizonte há vários anos. Estudou Filosofia na USP. É escritor e UX Writer. Autor de Associação Robert Walser para Sósias Anônimos e E se Deus for um de nós?, entre outros quinze livros. Em 2017, conquistou o 13º Prêmio Barco a Vapor, com a obra juvenil O cometa é um sol que não deu certo, publicada pela Edições SM. Em 2023, foi a vez do Meu amigo Pedro, publicado pela Abacatte Edtorial, vencer um prêmio, o Biblioteca Nacional. A viagem de Hanno e Ganda é seu livro de estreia na Peirópolis.

 

 

 

Entrevista com Samuel Casal

Peirópolis: Samuel, sobre o processo de ilustrar A viagem de Hanno e Ganda, conta um pouco como foi, desde o contato com a obra e a escolha da técnica e das imagens. 

Samuel: Quando comecei a ler o texto, de imediato já começaram a surgir as possibilidades de ilustração na minha cabeça e todas faziam muita referência ao meu universo de imagens! Além dos animais sempre terem feito parte do meu repertório visual, pelo meu interesse na diversidade de formas peculiares que cada um traz em sua natureza, neste livro, os próprios animais ainda são criaturas fantasiosas, pelo contexto do desconhecido, do imaginado. Percebi, então, que o grande desafio na abordagem do texto seria justamente o de representar as criaturas de forma menos contaminada pelo conhecimento visual e diminuindo as referências de imagens que já temos prontas na nossa cabeça. Para isso, eu escolhi uma técnica onde não fosse possível controlar completamente o traço, deixando assim as artes sujeitas a acidentes e passíveis de mudanças de direção durante o processo. Utilizei o acetato com manchas básicas pinceladas de tinta, e com instrumentos de ponta seca, dentais e até bisturis.  Praticamente criei fotolitos artesanais, descontruindo as camadas e abrindo espaços de luz nas silhuetas pintadas. Vários fatores da técnica, como a espessura de tinta e até temperatura ambiente interferiam no processo, em que várias vezes surgiam texturas e comportamentos nas matrizes, que levavam o trabalho a uma direção diferente da que eu imaginava e assim, o resultado acabava me surpreendendo também. Desse modo, as criaturas ganhavam ainda mais a estranheza que eu buscava, como uma forma natural de interpretar as descrições de seres ainda não representados visualmente, com mais uso da imaginação do que da memória.

 

P: O livro traz os bestiários aos leitores, publicações que circulavam durante a Idade Média e que misturavam ciência e imaginação, borrando as fronteiras entre o que existia e o que não existia. De que modo sua obra dialoga com o espírito dos bestiários?

S: No meu processo de criação, eu dificilmente projeto os desenhos antes, fazendo esboços complexos ou usando imagens de referência, e como muitas das técnicas que eu utilizo são baseadas no desenho negativo, eu parto de manchas escuras e silhuetas onde desenho com a luz, ou seja, parto do escuro para o claro, então existe algo como uma revelação no processo. Acho que essa forma de compor o desenho tem muito em comum com o tema do livro, já que através de uma descrição, seu cérebro começa a construir, a revelar a criatura descrita pelas palavras aos poucos, com suas sensações e imaginação, até formar uma imagem, que não necessariamente é fiel à realidade, mas que é carregada de impressões muito pessoais, carregada de imaginação, e isso que começa a levar a realidade para o mundo da fantasia. Muitos mitos e lendas podem se originar dessa fronteira entre o real e a imaginação, e isso tem tudo a ver com meu trabalho.

 

P: Ilustrar para livros é muito diferente do trabalho que realiza quando faz gravuras ou pinta em cerâmicas?

S: Neste caso, foi muito semelhante. Com a liberdade editorial e com o próprio contexto da história, criei todas as artes como eu costumo fazer em minhas peças e gravuras, ou seja, sem praticamente nenhum esboço prévio, deixando os traços fluírem de acordo com a forma com que o material se comportava, deixando o gestual trabalhar às vezes e, em outros momentos, tentando ter mais controle dos traços, mas sempre aceitando os acidentes e aproveitando as surpresas durante o processo.

 

P: Quais são as suas fontes? Quais artistas e poéticas se fazem presentes em seu trabalho?

S: Eu me inspiro basicamente em duas vertentes muito diferentes do desenho. Uma tem origem nas gravuras tradicionais como as de Gustave Doré, onde admiro todo apuro técnico, hachuras e o controle totalmente racional da criação; e outra que é o oposto, que vem da arte primitiva, de povos antigos, com grafismos naturais sem interferência de referências visuais definidas. Gosto muito também da arte popular do cordel nordestino, um desenho mais intuitivo e originado em algum lugar mais desconhecido da mente, um lugar menos racional, com menos interferência. Acho que meu trabalho acaba sendo uma mistura disso, gosto desses movimentos no meu processo, às vezes parece até uma meditação, onde deixo minha mão solta, sem pensar muito, traçando de acordo com a sensação que estou tendo naquele tempo. Já em outros momentos, gosto de controlar, de limitar e definir o que está acontecendo no trabalho. Acho que assim sempre consigo ter um algum elemento de surpresa, não óbvio e projetado no final do trabalho, para que o resultado não seja apenas uma demonstração de técnica ou uma jornada que já comece se sabendo exatamente onde se vai chegar.

 

Conheça o ilustrador:

Samuel Casal nasceu em 1974, em Caxias do Sul, RS, e reside em Florianópolis, SC, desde 1998. Trabalhando como artista visual há mais de trinta anos, ilustrou publicações nacionais e internacionais e foi vencedor de oito troféus HQMIX. Em 2013, recebeu o Prêmio Jabuti e Menção Honrosa na Bienal Brasileira de Design Gráfico. Seus trabalhos com relevo e pintura em grandes formatos já integraram espaços como a loja conceito da marca Nike no Rio de Janeiro, e a abertura da novela Velho Chico (Rede Globo). Atualmente se dedica também à arte da pintura em cerâmica, conjugando técnicas variadas através da experimentação de materiais.

Add Comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Olá! Preencha os campos abaixo para iniciar a conversa no WhatsApp

PHP Code Snippets Powered By : XYZScripts.com