Entrevista: Chico dos Bonecos fala sobre seu novo livro - Editora Peirópolis

Entrevista: Chico dos Bonecos fala sobre seu novo livro

Peirópolis – De onde nasceu a inspiração para criar esta peça radiofônica?

Francisco Marques – Nasceu da leitura da “Didática Magna”. Fiquei encantado pelas ideias, pela linguagem e pela paixão do professor Comênio. Misturei esse encantamento com a minha experiência em formação de professores e temperei tudo com a minha vivência de poeta, contista e desenrolador de brincadeiras.

Peirópolis – Qual a importância da “Didática Magna”?

Francisco Marques – É um marco na história da educação. Um marco, também, na história das reformas sociais: a ideia de “escola pública”, uma escola para todos, nasce sob a forte inspiração deste autor. Esta obra clássica deu a Comênio os títulos de “o precursor da pedagogia moderna” e “o pai da didática”.

Peirópolis – Comênio viveu em que época?

Francisco Marques – Ele nasceu em 28 de março de 1592, na região da Morávia ? na atual República Tcheca. Morreu em 15 de novembro de 1670, em Amsterdã, na Holanda. Ele escreveu mais de duzentas obras. A “Didática Magna” foi publicada em 1657. Nas comemorações dos trezentos anos de sua publicação, a Unesco lançou uma antologia de textos de Comênio. No prefácio desta obra, Jean Piaget revela a profunda contemporaneidade deste professor.

Peirópolis – E como se desenvolve a peça?

Francisco Marques – A peça é, simplesmente, Comênio falando para os pais e os professores de hoje. Suas falas, entretanto, são breves, brevíssimas. E logo em seguida entra uma canção. É cantoria o tempo todo. Comênio canta e convida o ouvinte a cantar também.

Peirópolis – Quais são as canções do repertório comeniano?

Francisco Marques – Duas canções ? “Meu coração” e “Meu cavalinho” ? são de autoria do compositor mineiro Rubinho do Vale. Todas as outras cantigas são de domínio público ? do universos das canções milenares e planetárias. Para algumas destas cantigas, agasalhei outras letras. O capítulo “A peça radiofônica” traz, além dos créditos, um pouco da história destas canções.

Peirópolis – Todas as canções estão no CD que acompanha o livro?

Francisco Marques – O CD traz a peça completa. Eu interpreto o professor Comênio e diversos instrumentistas e cantores interpretam as dezoito canções. A direção musical, as adaptações e os arranjos são de Estêvão Marques.

Peirópolis – Qual a duração da peça radiofônica?

Francisco Marques – Sessenta e dois minutos: trinta e dois minutos de falas comenianas, vinte e sete minutos de canções e três minutos de uma fábula de Esopo. As falas de Comênio duram, em média, um minuto. Tem uma fala, “A utilidade do conhecimento”, que dura apenas trinta e nove segundos ? e logo em seguida entra a canção “Bem-te-vi quer que eu te veja”.

Peirópolis – E por que você pensou a peça com esta dinâmica?

Francisco Marques – Apenas segui a orientação do próprio Comênio: misturar o útil ao agradável. Se esta é uma postura importante em relação às crianças, por que não usar esta mesma proposta em relação aos pais e aos professores?

Peirópolis – Como são as falas comenianas?

Francisco Marques – São falas poéticas, vibrantes, bem-humoradas, repletas de comparações ? todas elas ligadas à natureza: semente, sol, terra, árvore… Na “Didática Magna”, Comênio dialoga com um leitor imaginário ? um leitor questionador, provocativo. Este recurso literário foi incorporado de maneira teatral ? e está sempre presente nas falas reflexivas.

Peirópolis – Através desta peça radiofônica podemos conhecer a “Didática Magna”?

Francisco Marques – Todas as falas, quadro a quadro, estão fundamentadas na “Didática Magna”: as idéias, as argumentações e as comparações. E, é claro, a sensibilidade, a emoção, a paixão. O texto final é de minha autoria ? reescrevi tudo para que a fala tivesse a fluência de uma conversa entre amigos.

Peirópolis – Você respondeu a uma parte da pergunta. Afinal, ouvir esta peça radiofônica equivale a conhecer a “Didática Magna”?

Francisco Marques – Vamos brincar com os números? A “Didática Magna” tem, aproximadamente, quatrocentas páginas. Se eu gasto um minuto e meio para ler uma página, vou gastar seiscentos minutos para ler o livro. Como transformar dez horas de leitura em apenas trinta minutos de falas reflexivas? É claro, claríssimo, que quem “recorta e seleciona” já está adotando um ponto de vista, uma interpretação. Acompanhar os dezessete quadros desta peça equivale, portanto, a conhecer algumas ideias centrais deste clássico da pedagogia. Equivale, também, a um convite para se banhar diretamente na fonte da “Didática Magna”.

Peirópolis – E como seria esse banho?

Francisco Marques – O capítulo “As fontes comenianas” mostra onde estão localizadas estas ideias na “Didática Magna”. São mais de cento e quarenta citações ? para a delícia do leitor que gosta de montar quebra-cabeça…

Peirópolis – Montar quebra-cabeça?

Francisco Marques – Comparando as fontes com o texto da peça, o leitor curioso poderá descobrir como se desenvolveu o artesanato literário a partir da matéria-prima comeniana. Como aquela idéia ganhou este destaque? Como esta imagem se desdobrou em outras imagens? Como este argumento se articulou com outro argumento? Como a poesia e o humor ganharam tanta importância?

Bem… Para quem gosta de brincar, é um quebra-cabeça gigante. E tem mais. O capítulo “Comênio: a obra de uma vida e a vitalidade de uma obra” revela outros aspectos importantes deste clássico da educação.

Peirópolis – Qual foi o seu ponto de vista para escolher os conteúdos desta peça?

Francisco Marques – O ponto de vista foi a palavrinha “hoje”. Selecionei algumas ideias essenciais que precisam ser cotidianamente relembradas por todos nós, pais e professores de hoje. Tudo gira em torno de três temas: a inteligência, a arte de ensinar e a disciplina. A beleza das reflexões e a clareza das argumentações de Comênio revitalizam estas ideias, criam um novo poder de convencimento em torno destas ideias. E o teatro, claro, claríssimo!, tem um papel importante na revitalização destas reflexões.

Peirópolis – O teatro? Como assim?

Francisco Marques – Comênio não é uma personagem de ficção, mas o espaço cênico tem a capacidade de criar um ambiente ficcional em torno deste professor de mais de quatrocentos anos de idade. Esta súbita mistura de realidade e imaginação estabelece uma rede de cumplicidade entre o ator e a plateia, o narrador e o ouvinte ? e gera uma recepção mais acolhedora, criativa e crítica. Na verdade verdadeira, Comênio e teatro formam um par perfeito.

Peirópolis – “Par perfeito”? Que história é essa?

Francisco Marques – Comênio dedicou um enorme carinho ao teatro na escola: montava peças com os alunos e apresentava para toda a comunidade. Ele também escrevia peças para seus alunos ? como, por exemplo, “A escola lúdica”. Ele mesmo adaptou algumas de suas obras para o teatro ? como, por exemplo, “A porta aberta das línguas”.

Peirópolis – Vamos esclarecer uma coisa. Você estava falando em “peça radiofônica” e, de repente, começou a falar em “teatro”. Qual a ligação entre uma coisa e outra?

Francisco Marques – Além da versão radiofônica, esta peça tem uma versão teatral: desde janeiro de 2008 venho apresentando a peça “Muitas coisas, poucas palavras” nas minhas oficinas e palestras para pais e professores.

Peirópolis – E como é a montagem da peça?

Francisco Marques – A mais simples possível: o ator e a plateia. Eu sou, ao mesmo tempo, o Comênio que traz as suas reflexões e o ouvinte imaginário que questiona e provoca ? e sou, ainda, o Comênio que puxa as cantorias com a plateia. Mas… Antes do professor Comênio apresentar as suas ideias, eu apresento os meus brinquedos.

Peirópolis – Como é que é? Um espetáculo antes do espetáculo?

Francisco Marques – Mais uma vez, estou apenas seguindo a orientação do professor Comênio: antes de falar sobre as coisas, eu preciso mostrar as coisas. Ou seja: antes de falar sobre a arte de ensinar, eu preciso mostrar a arte de ensinar em ação.

Peirópolis – E o que você mostra neste espetáculo-surpresa?

Francisco Marques – Mostro alguns brinquedos milenares e planetários, sempre contemporâneos e futuristas: a escada de maracá, o jabolô, o teatro de fantoches… Nesta versão teatral até os intervalos se transformam em brincadeiras.

Peirópolis Como é que é? “Intervalos”?

Francisco Marques – No capítulo “A peça radiofônica”, proponho dois intervalos bem posicionados ? do ponto de vista do tema e do tempo. O primeiro intervalo acontece aos vinte e um minutos, quando Comênio termina de falar sobre a criança e a inteligência. O segundo intervalo acontece aos quarenta e quatro minutos, quando Comênio termina de dançar os sete passos da arte de ensinar.

Peirópolis – Que brincadeira você costuma propor nestes intervalos?

Francisco Marques – A brincadeira varia em função do número de pessoas, do tempo disponível e do tipo de espaço. No primeiro intervalo, costumamos cantar, todos em pé, a parte final da cantiga “A árvore da montanha” ? uma canção com gestos, acumulativa, que já vinha sendo desenrolada pelo professor Comênio. Em seguida, participamos de uma manhã na vida da “Menina Janaína” ? uma história com gestos. No segundo intervalo, enfrentamos o desafio de soprar a pena… Em seguida, enfrentamos o desafio de soprar o fio ? o fio da história, o fio da memória…

Peirópolis – Você imagina outras montagens teatrais para esta peça?

Francisco Marques – Muitas. Por exemplo… Os alunos de uma turma de Pedagogia querem apresentar esta peça para as outras turmas. Os professores de uma escola querem apresentar esta peça na próxima reunião com os pais. O que fazer? Como a peça é dividida em dezessete quadros, teríamos dezessete “Comênios” ? ou até mesmo mais de um “Comênio” para cada quadro. Isso tornaria a montagem relativamente simples e rápida, porque os “Comênios” vão decorar e ensaiar textos bem curtos.

Peirópolis – E a parte musical?

Francisco Marques – Os “Comênios” cantam uma vez e, em seguida, convidam a plateia a cantar também. Nesta proposta, não estamos preocupados com o “cantar” profissional, com o “cantar” a partir de referências técnicas e estéticas. Para nós, aqui, “cantar” é sinônimo de “brincar” ? uma forma simples e profunda de expressar a nossa humanidade. Mas… Isso não impede que as canções ganhem um certo ar de espetáculo.

Peirópolis E de onde viria este ar?

Francisco Marques – Vamos continuar com aqueles exemplos… Entre os alunos daquela turma de Pedagogia e entre os professores daquela escola já existem alguns talentos musicais: cantores e instrumentistas. Por que não mobilizar estes talentos para dar um contorno musical mais atraente? Mesmo neste caso, é claro, claríssimo!, a plateia continua sendo convidada a cantar também.

Peirópolis – No início desta conversa, você falou que trabalha com formação de professores. O que você aborda neste trabalho?

Francisco Marques – As relações entre dois verbos: brincar e educar. O meu encantamento por Comênio, na verdade verdadeira, está diretamente ligado a este tema. A “Didática Magna” está povoada de palavras que brotam da terra das brincadeiras: entusiasmo, fervor, construção, diálogo, prazer, afeto, coração, alegria…

Peirópolis Podemos dizer que esta peça é o encontro do professor Chico dos Bonecos com o professor Comênio?

Francisco Marques – É isso aí. “Muitas coisas, poucas palavras” é o relato sincero de um encontro. Não quero falar sobre “aquilo que eu acho que os outros deveriam ouvir”. Quero falar apenas sobre aquilo que eu gostei de ouvir, aquilo que me tocou profundamente. Esta peça reúne as palavras de Comênio que falaram dentro de mim ? e estas são as únicas palavras que podem ter a pretensão de falar à razão e ao coração do outro.

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