Diário das águas é afluente de muitos diários de bordo, alguns deles cheios de marcas do caminho, respingos d'água e cheiro de chuva. Tem origem em textos rascunhados no balanço da canoa, escritos entre uma parada ou outra, em páginas sempre cheias de notas de beiradas. Nas cadernetas de viagem, palavras, pensamentos, descobertas e perguntas ganham porto e ancoradouro.
Confira a seguir alguns relatos sobre as infâncias das águas: um conteúdo com textos, fotos e áudios produzidos pelos integrantes do Projeto Infâncias, com a participação de Gabriela Romeu, Marlene Peret e Samuel Macedo.
Boa viagem!
O vapor de Cachoeira não navega mais no mar...
Ouvimos o povo das beiradas do rio São Francisco cantar esses versos quando por lá passamos. Não vimos, no entanto, essa lendária embarcação das águas do Velho Chico, um rio cheio de mistérios, um verdadeiro protagonista do cotidiano barranqueiro. Para os ribeirinhos, o Velho Chico é uma entidade encantada. Dizem que o rio reina, que o rio acorda e que o rio dorme. É confidente e testemunha da árdua jornada de pescadores, lavadeiras, remeiros e barqueiros. E também das crianças, muitas, a pular em suas margens.
Velho Chico, o vaporzeiro, traz um pouco de muitos meninos, pequenos ou crescidos, que encontrei pelas beiradas de Matias Cardoso, antiga Morrinhos, uma cidade histórica mineira com ares baianos, localizada quase na divisa entre os dois Estados. Fica no norte das Gerais. Na praça da cidadezinha, por onde mulheres se escondem do calor escaldante debaixo de sombrinhas coloridas. Parece que quase tocamos o tempo, ali pairado.
São muitas as histórias que rondam a cidade de Matias Cardoso. Zé das Potocas, um verdadeiro contador de histórias do lugar, faz versinho pra se apresentar a quem chega de longe:
Nas águas tem muriçoca
Aqui na serra só mutuca
Sou sobrinho de Argemiro
E primo do véio Miruca
E logo emenda numa prosa. Lembra que a cidade traz muitos tesouros escondidos, pois o povo antigo tinha por hábito guardar suas riquezas em potes e enterrá-los no chão. Diz ele que, se uma pessoa ambiciosa achar o tesouro enterrado, o ouro vira carvão.
Havia muitas outras visagens por lá. Mula sem cabeça, carretão (um trem fantasma) e Lobisomem (com nome e sobrenome). Lúcio Cassote, Mané Buchinho e Pascoal tinham fama de virar bicho peludo. Mas isso era no tempo em que não existia energia elétrica por aquelas bandas. Quando a luz chegou, os bichos sumiram todos. Ah, um detalhe: “potoca”, naquela região, quer dizer “mentira”...
Ele dá notícia também dos vapores encantados do Velho Chico. São de um tempo em que aquelas águas eram povoadas de embarcações – canoas, barcas, vapores –, que subiam e desciam o rio, de Pirapora (MG) e Juazeiro (BA). O São Francisco já foi rio-estrada, por onde navegaram primeiro as barcas de carrancas e depois os vapores, também chamados de gaiolas, barcos movidos por imensas rodas d’água. Durante muito tempo as embarcações eram o único meio de transporte de quem morava naquelas beiradas. Com o passar do tempo, chegaram as estradas de terra e asfalto, ligando Sudeste e Nordeste.
Pelo rio, há muitas ilhas, onde por muito tempo habitaram e ainda habitam os vazanteiros, povo que vive a observar o Velho Chico, pois sua vida é regida pelo ciclo das águas. Os vazanteiros, também conhecidos como barranqueiros, seguem as cheias e as vazantes do rio e plantam em suas beiradas, no lameiro, que é bastante fértil. Para o vazanteiro, tudo tem seu tempo. Tem o tempo de pescar, de plantar e de colher.
Uma das comunidades de vazanteiros é o Quilombo da Lapinha, que já habitou a Ilha da Ressaca e hoje vive no continente, na “terra firme”. É uma vida que segue o ritmo das águas do Velho Chico. “Quando dava a cheia do rio, a gente carregava tudo, coisas da casa, alimentos e animais, para a terra firme. Ficava lá até a água baixar", lembra Dona Isabel, nascida e criada naquelas beiradas.
Navegando pelo rio Tapajós, a partir de Santarém, chegamos à comunidade dos ribeirinhos de reserva extrativista Tapajós-Arapiuns. Esses ribeirinhos vivem no platô, uma área elevada, a alguns metros do rio, de onde tudo observam. Da janela, eles admiram uma paisagem digna de cartão-postal. Como é bonito o Tapajós!
Na comunidade de Suruacá, é a Rádio Japiim, no passado uma corneta, que dá as notícias a quem desembarca no rio de águas claras e areias branquinhas. Quem chegou, quem partiu. Quem nasceu, quem morreu. Japiim é um pássaro também conhecido em outros lugares como japinim. Para o povo amazônico, ribeirinhos e indígenas, é uma ave que sabe imitar o som de muitos animais. Tem boa memória.
Ali rio vira mar.
Maré sobe, maré desce. E a vida segue tranquila nas beiradas do Tapajós, lá pelas bandas de Suruacá. As mães banham os filhos nas margens do Tapajós, cujas águas são geladinhas pela manhã e morninhas à tarde. Só é preciso estar atento às arraias, peixes achatados, que têm um ferrão que machuca que só. Acordam e se deitam com a luz do dia, numa vida regrada pelo acender e apagar do sol.
Na almoço, a farinha é o prato principal. E todo o resto é acompanhamento. A farinha é servida com peixe, açaí e até com tatuaçu, caçado nas matas, numa atividade que envolve toda a comunidade. O tio caça, a vó limpa, a mãe cozinha. As crianças comem tudinho. Não sobra nem a carcaça do bicho, que vira comida dos cães da casa. A sobremesa são as frutas colhidas no pé, pelos terreiros: taperebá, bacaba e murici.
Ainda pequenas, as meninas aprendem a tecer a palha do tucumã, uma palmeira que chega a atingir 15 metros de altura. Suas folhas, chamadas de tucum, são boas para fazer balaios, bolsas, abanos, paneiros e tapetes.
Esse fazer artesanal e ancestral começa quando se retira as folhas do tucumã (é preciso tomar cuidado com os espinhos da palmeira nessa hora). A folha fica secando por cerca de três dias. Para ganhar cor, a palha, já sequinha, é tingida com frutos, folhas e sementes da floresta. Urucum (tons vermelhos e alaranjados), jenipapo (preto e cinza), a planta carajuru (vermelhos terrosos), mangarataia (amarelo). Toda a mata pode pintar a palha. Para fazer o verde, basta misturar mangarataia com urucum.
Na região amazônica da várzea, temporariamente submetida às inundações dos rios, as pessoas vivem nos ritmos das águas que se espalham, invadem campos, terrenos e até casas, e depois vazam. Quando a água baixa, deixa uma lama. Mas o sol é quente e logo o chão seca. É, então, tempo das terras.
Rio tem furo, boca e braços. Essa região é um braço do Amazonas: um paraná. Quando naveguei pelo Amazonas, pequenas embarcações parecem barquinhos feitos por crianças, tamanha a imensidão do rio... Em muitos trechos, não vemos suas margens e, então, parece que estamos num mar de água doce. Navegar pelo Amazonas nos faz entender sua grandeza: compete com o rio Nilo, no Egito, o topo do ranking do rio mais extenso do mundo.
Nesse pedaço do rio Amazonas, as crianças são criadas com muitas frutas dos terreiros (goiabas, castanhas, jenipapos) e muitos peixes dos rios (surubim, filhote, curimatã). O prato principal é peixe e farinha de mandioca. O acari, um peixe cascudo, é dos mais populares por lá. No imaginário local, é considerado um peixe forte, que não morre facilmente. É bastante apreciada na região a cabeça do acari, que é preparado de vários jeitos: guisado, cozido, assado e desfiado (com piracuí, uma farinha de peixe usada para fazer bolinhos e tortas).
Os meninos e as meninas são também criados à base de muitos mingaus, como o carimã e o chibé. O carimã é feito de farinha a massa de mandioca (tapioca), finamente peneiradas e misturadas com sal e açúcar. O chibé, parecido com o carimã, tem a farinha peneirada e encharcada com água morna e, depois, tudo é colocado para cozinhar em água fervendo com um pouco de sal. Óleo de cozinha e um pouco de leite podem ser adicionados para melhorar o sabor.
Se alguém adoece, a farmácia é no terreiro, com hortas, ervas e plantas medicinais plantadas em canteiros suspensos (jiraus). É ali que as mães buscam ervas e pimentas para curar panema, mau-olhado, quebranto e perturbações provocadas pelo boto. No telhado das casas, os frutos das cueiras servem de vaso para as plantas, esverdeando ainda mais a paisagem. As cuias, frutos da cueiras, também viram boizinhos nas mãos das crianças.
Em cada temporada, há um tipo de brincadeira. Nas cheias, o tempo das águas, a brincadeira é flechar o rio com um corpo-brinquedo. Na época da seca, o campinho de futebol é a grande atração de meninos e meninas. O terreiro (ou quintal) ao redor das casas também muda bastante conforme a época do ano.
Com um pedaço de jornal e algumas dobras, muita criança sabe fazer um barquinho de papel que cabe nas mãos. Com uma folha de zinco e um tanto de martelada, as crianças Xikrin fazem uma canoa onde cabe o comandante. Esse povo originário vive às margens do rio Bakajá, um afluente do rio Xingu, no Pará.
Na beirinha do Bakajá, perto de um barranco que leva quem chega até a aldeia, localizada no alto, há tempos está ali estacionado um barco verde, no passado bem útil ao povo Xikrin, pois era a embarcação que fazia o percurso entre a aldeia e a “rua”, como costumam chamar a cidade de Altamira, no Pará.
O barco abandonado, cheio de marcas do tempo, é uma espécie de brinquedo de parque para as crianças Xikrin. É esconderijo, é trampolim.
E também se transforma em muitas outras coisas. Foi do teto da embarcação que os meninos tiraram a folha de metal que virou uma canoa de zinco leve para carregar, boa para navegar. Sem remos de madeira, os meninos improvisam com as mãos remadoras e usam chinelos de borracha para impulsionar o barquinho nas águas do Bakajá. Cabe uma, cabem duas, cabem até três crianças!
O rio Xingu é cheio de trechos encachoeirados, cachoeiras de águas doces nada dóceis. São águas rápidas, agitadas. Pois é num trecho desse de rio que Jamile, Bibi e Iara, entre outras meninas do povo Arara da Volta Grande do Xingu, vivem a se aventurar. Corajosas, enfrentam as corredeiras, entre as ilhas do rio.
Esse povo vive às margens de uma grande curva do rio, conhecida como a Volta Grande do Xingu. É ali que foi construída a usina hidrelétrica de Belo Monte, que provocou mudanças drásticas na vida desse e de outros povos.
Para abrir as portas do rio, as meninas precisam de uma chave: o remo. Impossível navegar naquelas corredeiras sem esse apetrecho. É por isso que as meninas vão então até a casa do avô, Leôncio Arara, na época a liderança indígena mais velha da aldeia. Ele dava a benção às meninas e entregava o remo, a permissão para enfrentar as águas.
É mais comum ver as meninas ao redor das casas do que nas corredeiras do rio, território geralmente dominado pelos meninos. Elas estão geralmente nas beiras, ajudando nos afazeres da casa, lavando roupa, lavando louça. Mas as meninas do povo Arara mostram que lugar de menina é onde ela quiser. E que elas são valentes e enfrentam as águas.
Os Araras da Volta Grande
O rio Xingu é a única estrada que vai para Altamira. E os araras conhecem na palma da mão os atalhos que encurtam caminhos para chegar ligeiro na grande cidade. Embrenham-se por igarapés, braços de rios e furos que só eles sabem onde vão dar. Mas só não passam pelo poção da Bela Vista porque lá mora a temida cobra grande do Xingu. E ninguém quer topar com ela, né?
A aldeia fica em solo firme, que é formado por terras altas e baixas. E as crianças de lá já sabem, se tem beiradão e castanheiras, a parte é alta, livre de enchentes. E se alaga, é baixa ou melhor dizendo baixão. Quando passam as cheias e chega a vazante, as várzeas secam, ficando apenas terras férteis, campim viçoso para os bichos e lagoas onde piabas, bagres e piuns ficam presos, isolados do rio.
A meninada de lá tem vários quintais de brincadeiras. Tem as redondezas das casas, que são recheadas de árvores frutíferas que nascem ali mesmo, como cacau do mato, murici, bacaba e araçá. Tem também o rio e a Ilha de Xandina, que eles cruzam em canoas que cortam correntezas e caminhos pra lá de encachoeirados. Brincadeira lá é saber mergulhar no rio, dar boas remadas e não errar flechadas. É saber catar goiabas, fisgar piabas e alcançar bacabas.
Os Araras vivem de quase tudo que tem lá. Do babaçu, eles tiram o óleo e a palha para cobrir as casas. Com a embira preta, eles amarram os esteios das casas. Com a samaúma eles fazem remos e barcos. Das matas e dos rios, eles tiram peixes e caças. Na terra preta fertilizada pelas águas, plantam batata, mandioca, milho e mandioca, que dela tiram a farinha. Das castanhas, eles fazem o chibé e tiram o leite para temperar as carnes.
Mais Xingu
Açaizeiro, tucumã, caranã, inajazeiro... São muitas as palmeiras da Amazônia usada pelos povos ribeirinhos. Geralmente, essas árvores fornecem matéria-prima para fazer telhados das casas, produzir doces e também criar brinquedos.
Quando o cacho do açaí se abre e cai no chão, vira barquinho. Sua forma é uma canoa perfeita, pronta para ser brinquedo a enfrentar o banzeiro. É assim também com o cacho da bacaba, que fornece uma folha maior, um barco grandão.
Já o talo do caranã, uma palmeira conhecida em outros cantos como buriti, tem um miolo mole, mole, até lembra o isopor, usado por meninos mais habilidosos na construção de barcos bem estruturados. Os carpinteiros meninos, crescidos ou não, levam uma tarde inteira ou uma manhã toda na brincadeira de construir.
“A gente aprende só de olhar os mais velhos”, conta Nildo, rapaz crescido já, pescador da madrugada, criado na comunidade ribeirinha de Vila Nova, às margens do Xingu. As crianças das águas, de horizontes alargados, sabem além.
Lago do Cuniã
Dona Pequenina tinha 82 anos nos idos de 2002 em Rondônia o Lago do Cuniã, um lugar povoado por jacareaçus, dos grandes, gosta de contar histórias para os netos e para os visitantes. Conforme o interesse e a reação de quem a ouve, ela se empolgava e aumentava um ponto no conto. Falava baixinho e usava palavras que eram novas para mim. No final, ressalta: "É tudo verdade".
Cobra Grande, Curupira, Caipora, Boto: ela contava histórias de muitas entidades das águas e das matas. Mas a mais recorrente em suas histórias é o Caipora, um protetor da floreste como:
"Eu sei que o papai contava do Caipora. Ele cansava de ver o Caipora na mata quando cortava a seringa. Diz que ele cantava assim: "Ei, ei; ei, ei". Aí meu pai trepou no galho. Vinha ele com um cachimbão e um bando de queixadas na frente. Ele tem um pé de gente, é peludo, fuma muito e não acha muito bom matar os animais da mata. Às vezes, dá surra no caboclo."
Lá vem ela, lá vem ela: Gabriela, diretamente de São Paulo. Foi o que ouvi da rádio corneta de uma comunidade no paraná do Tapará, assim que a voadeira por lá estacionou.
O menino Ravel, o locutor da rádio corneta, avisava a todos a chegada da visitante, no caso, eu. Mochilão nas costas e tentando me equilibrar no trapiche, eu me senti desfilando no tapete vermelho enquanto ia ao encontro de Ravel.
O menino sorridente era cheio de histórias. Contou um pouco de sua vida ali, do tempo das cheias, das galinhas que iam fazer poleiro na copa das árvores e, principalmente, de como sentia falta de pisar no chão.
Enxerguei naqueles olhos curiosos de Ravel uma verdadeira sabedoria da espera. Esperar a água vazar pra jogar futebol, caminhar até a escola, brincar de pira (pega-pega). O menino vivia, intensamente, o ciclo das águas.