Auto da barca do inferno em HQ: G. Vicente por L. Ferreira
Não foi por acaso que Gil Vicente caiu nas mãos do tarimbado quadrinista Laudo Ferreira. Sua familiaridade com o Auto da barca do inferno e seus personagens alegóricos vem dos anos em que acompanhou uma das montagens do clássico, o que beneficiou imensamente seu trabalho com o álbum.
A transposição da peça para a HQ contou com a consultoria do professor de literatura Maurício Soares Filho, que também vem de uma longa experiência com o texto de Gil Vicente, travando com Laudo um diálogo fértil e extremamente produtivo. As cores do arte-finalista Omar Viñole, parceiro de Laudo no Estúdio Banda Desenhada, vieram completar a proposta de Laudo e Maurício, de capturar os personagens de Gil Vicente em toda a sua força dramática.
Um pouco do work-in-progress que gerou o álbum pode ser conferido no blog de Laudo, nos posts dos dias 3 de março de 2011, 15 de março de 2011 e 29 de março de 2011, esse último sobre uma breve HQ realizada para a revista Pessoa – dedicada à literatura lusófona – tendo Gil Vicente como personagem.
Confira também a resenha de Lillo Parra no Gibi Rasgado.
Para dar uma folheada nas primeiras páginas do álbum, clique aqui.
Abaixo estão disponíveis, além de informações sobre o lançamento, o prefácio de Maurício, o posfácio de Laudo Ferreira e o texto de orelha.
PREFÁCIO
Gil Vicente em cores fortes
Chata, difícil, sem relação com a vida do leitor: esses são adjetivos que rondam parte da literatura cobrada nos vestibulares. No entanto, quando nos aproximamos de autores como Gil Vicente, percebemos que é um grande privilégio contar com obras literárias de altíssima qualidade como janelas para compreendermos o passado.
Alguns autores escreveram textos para purgar questões pessoais mais íntimas, outros para colocar em discussão os problemas da sociedade em que viviam. Há aqueles que compuseram hinos para grandes festejos e outros para cerimônias fúnebres, e é sempre importante lembrar que todos eram pessoas como nós: também sentiam ansiedade, desejo e alegria, e expressavam esses sentimentos em suas obras. De acordo com o gênero escolhido, textos podem ser lidos em silêncio, cantados por grandes corais ou transformados em filmes ou seriados de TV.
Gil Vicente escreveu para ser representado. Seu teatro ganhou notoriedade durante o reinado de D. Manuel, na Lisboa do século XVI, mas nunca deixou de ser apresentado nas ruas, em frente às igrejas, nas feiras livres, atingindo um público extremamente eclético e exigente. Afinal, o teatro popular, feito nas ruas, precisa contar com um encanto extra para conseguir fazer com que todos parem para ver e se deixem levar pela magia da história contada, sem o apoio do aparato da sala especialmente projetada para isso.
O Auto da barca do inferno é um texto da maturidade de Gil Vicente, quando, em 1517, ele já tinha atingido lugar de destaque na corte portuguesa e podia se dar ao luxo de falar algumas verdades, referindo-se, por exemplo, a um fidalgo arrogante e a um padre luxurioso.
Os desenhos do quadrinista Laudo Ferreira fazem com que muitas vezes nos sintamos no meio da cena. Laudo apresenta praticamente um storyboard do texto, que parece pronto para ser “assistido” pelo leitor.
Poder olhar para as personagens e vê-las se movimentando na folha de papel é uma contribuição inigualável para a compreensão de um texto tão complexo, escrito em versos e tão marcado pela rima e pelo ritmo que o português arcaico impõe.
Optamos por manter a linguagem completamente original de 1517, para que o leitor possa, apoiado pelas imagens, entrar em contato com o rico universo vicentino sem nenhum tipo de facilitação. Afinal, mesmo que não estejamos preparados para entender detalhadamente todas as palavras pronunciadas pelas personagens, nada seria capaz de substituir a música que o pai do teatro em Portugal faz soar em nossos ouvidos, quando mergulhamos de cabeça no vigor de sua linguagem.
Maurício Soares Filho, consultor literário da coleção
POSFÁCIO
Além de desenhar e fazer histórias em quadrinhos, costumo flertar com outras expressões artísticas, entre elas o teatro. Há anos crio cenários, artes para cartazes e figurinos para peças teatrais, criações que me dão muito prazer. Não por acaso me casei com uma atriz, Romana Vasconcellos.
Também não foi um acaso trabalhar na transposição para os quadrinhos desse maravilhoso texto do Gil Vicente. Romana encenou, durante muitos anos, o Auto da barca do inferno, interpretando personagens como o Anjo e a Brísida Vaz, na montagem dirigida por Paschoal da Conceição e encenada pelo Grupo Dragão 7. Foi quando tomei contato com esse texto incrível, conhecendo suas métricas e rimas, admirando seu humor, mergulhando em suas intenções. Esse auto nos apresenta um grupo de personagens que, mesmo passados 500 anos da escrita do texto, ainda estão presentes, vivos e atuantes em nossa sociedade: temos o agiota, o padre em pecado contra seus próprios dogmas, a alcoviteira e cafetina, o nobre que menospreza as castas mais baixas, o juiz corrupto e aquele que morre em nome de outro, acreditando ir para o paraíso celestial.
Mais que abrigar um texto dramatúrgico em páginas de HQ, tomei Gil Vicente como um parceiro: dei liberdade aos devaneios visuais para criar uma figura muito mais que sarcástica de um diabo, meio bufão, meio enfant terrible, que o tempo todo brinca, se diverte, debocha da corja que vai aparecendo num indeterminado cais – pronta para a derradeira viagem às terras infernais, como diz o protagonista do auto, mas crente que o destino é outro. O diabo ri e se diverte com isso, assim como nós, leitores.
Trabalhar com o Auto da barca do inferno me fez aprender um pouco mais sobre os múltiplos caminhos da criação e suas exigências, tão bem contempladas nos versos de Gil Vicente, em sua expressão atenta do gênero humano.
Laudo Ferreira, quadrinista
ORELHA
São duas barcas atracadas num remoto cais: uma vai para o paraíso, a outra para o inferno. Os viajantes chegam desorientados, pois são todos defuntos recentes. Encontram um barqueiro elegante e sarcástico que os convida para subir a bordo: é o diabo em pessoa. Depois de descobrirem o destino daquela embarcação, tentam subir na barca da glória, onde encontram um anjo difícil de ser convencido – ao contrário do diabo, anfitrião sedutor.
Diabo e Anjo são personagens alegóricos do Auto da barca do inferno, peça do dramaturgo português Gil Vicente que data de 1517. Escrita no apagar das trevas a Idade Média, a peça fornece ao leitor algo como uma olhada pelo buraco da fechadura, com revelações dos costumes da vida privada e um consequente julgamento moral. Ao lê-lo, o leitor contemporâneo tem acesso ao contexto da sociedade portuguesa nos primeiros anos da colonização brasileira.
Nem todo o humor cáustico do autor é capaz de abalar outra de suas características, o fervor católico. Gil Vicente trata de mandar para os infernos uma cafetina e quase deixa a ver navios um judeu, recusado até mesmo pelo Diabo. Por outro lado, o autor não teme fidalgos, homens do judiciário e padres luxuriosos, embarcando-os em más companhias. Já para a barca da glória, são poucos os escolhidos.
Ao verter o Auto da barca do inferno para os quadrinhos, Laudo Ferreira nos fornece a sua interpretação dos personagens – nascida de anos de convívio com o texto no teatro -, imprimindo-lhes uma estranha atualidade, e tornando a leitura imagética uma grande aliada do leitor que precisa ou deseja enfrentar a língua portuguesa em seu nascedouro.
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