Cantochão das antífonas pequenas (por Marcos Ferreira-Santos)
Cantochão das antífonas pequenas (por Marcos Ferreira-Santos), prefácio
O cantochão é um estilo conhecido no mundo ocidental em função de sua importância sagrada nas liturgias católicas e ortodoxas, sobretudo, no mundo medieval. Polifonia de vozes que repetem, em latim, quase que em transe, uma métrica e uma melodia que percorrem as paredes do templo e se dissipam como as luzes que penetram das rosáceas e dos vitrais laterais, iluminando, com a luz natural, o caminho que leva ao altar. Fundem-se com o ar e elevam a alma, ao mesmo tempo em que aprofundam o contato com o Sagrado. Somente as vozes em contrapontos delicados quase em uníssono marcam um tempo infinito no compasso lento da execução da obra. O ambiente passa a ser de contemplação. O templo se transfere para dentro do próprio corpo. Corpo-templo no enlevo dos fluxos e refluxos do canto. Não por acaso, o cantochão inicia-se na aurora da Idade Média com o trabalho cotidiano dos monges ao lavar o chão do mosteiro. O esfregão em seu movimento anima a alma cadenciada que inicia um salmo cantado (que, nesta dimensão, chega a ser um pleonasmo). Os outros colegas de ofício e credo respondem cantando o mesmo verso como antífona. Por vezes, apenas atrasam o compasso. Assim, as impurezas do chão, mescladas à água, vão se purificando. Pelo canto e pelos cantos todos do chão. Velha fórmula esquecida no Ocidente: o trabalho das mãos no ofício da vida trabalham a própria alma. Já não é apenas o chão que vai sendo limpo, mas a própria alma. Muito tempo depois, já na sistematização do Papa Gregório Magno (séc. IX), é que o estilo passa a ser chamado pelo epíteto de “canto gregoriano”, querendo limpar o passado do esfregão, relegando-o ao esquecimento e concedendo auras de nobreza apenas “espiritual” ao canto sequestrado do chão. Velho artifício ocidental: o ofício passa a ser coisa de pobre e os resultados do trabalho vão sendo perseguidos apenas pelo intelecto. No delicado contraponto, no decorrer de um istmo de tempo do compasso, as vozes formam uma antífona. Perseguem a melodia principal com a permanência deste pequeno atraso do compasso, mas sem perder o seu próprio compasso. Sombra que persegue o corpo iluminado por uma luz em seu contraponto. Terreno de contrastes tão delicados que, na superfície da experiência estético-musical, parecem inseparáveis. E o torvelinho das frases musicais vai umedecendo a alma que, já sem reservas, mergulha no etéreo do instante.
Curiosa paisagem que retorna ao espírito quando nos debruçamos sobre a obra de Gandhy Piorski investigando as brincadeiras de crianças no chão e os brinquedos fabricados por suas mãos. Ele pertence à nobre estirpe dos pesquisadores que, alimentados pela curiosidade crianceira, não distorce o fenômeno para classificá-lo nas fáceis e sedutoras taxonomias de toda e qualquer ciência ocidental. Todo ao contrário, está ele também no chão com suas crianças parceiras a brincar. Bachelardianamente. É de dentro que ele, generosamente, nos confidencia os segredos que habitam aquilo que gente séria qualifica (ou desqualifica?) de pueril. Pura brincadeira sem importância. Coisa de criança. Divertimento sem consequências para o mundo adulto das seriedades científicas. Acaso não seria, precisamente, essa “seriedade científica” a brincadeira mais usual das infantilidades adultas? Se Piaget investigasse a formação moral e das regras sociais do jogo dos pesquisadores e doutos professores no interior de um laboratório de pesquisa, talvez não demandasse tanto tempo em elocubrações desenvolvimentistas. Ali, a brincadeira corre solta sob o disfarce dos brancos aventais e crachás, cujas peraltices são registradas, transformadas em “lindos” gráficos e publicados em periódicos respeitáveis (qualis A) e devidamente indexados internacionalmente.
Porém, retornemos ao chão. Mais poético e mais crianceiro. Portanto, mais real. O estilo de Gandhy em suas pesquisas e reflexões atesta o contrário daquilo que ele receia seja eivado de críticas. Sua fenomenologia e sua hermenêutica são fiéis às origens de longa tradição e, para não nos determos na enorme lista de seus precursores, ele próprio vai indicando os companheiros de viagem ao longo da jornada. Fenomenologia não apenas de fundamento, mas, eu diria, fundamental. No cotejo sincero do fenômeno, vislumbra a “quase-presença” ao integrar a intuição como método (como via de acesso às profundezas) e, assim – sem fundamentalismos metódicos – se abre ao instante com suas crianças. Como em Rimbaud, em bom manoelês arcaico: “perder a inteligência das coisas para vê-las” (Matéria de Poesia, 1970). Sua hermenêutica não é sem raízes, mas todo ao contrário, como pergunta constante sobre o sentido das coisas, enraíza-se. E, de raiz em raiz, conecta-se à insuspeita rede entramada das raízes todas que fazem da terra um ser vivo, uno, vibrante na sístole e diástole de suas árvores. Lembraria, novamente, o poeta Manoel de Barros: “quando um rio começa um peixe, ele me coisa, ele me rã, ele me árvore” (O livro das ignorãças, 1993). Ou ainda: “entender é parede: procure ser uma árvore” (Arranjos para assobio, 1980).
Ao nos confidenciar a materialidade dos elementos, a gestualidade do corpo da criança e suas narrativas, vamos nos reconhecendo nos meandros da memória que, por pouco, não se perdeu no torvelinho das mesmices adultas da seriedade, consumida pelo consumo. Esse maranhense (que traz o Maranhão no próprio nome, pois que é Jouberth Gandhy Maranhão Piorski Aires) juntador de miúdos tesouros, que, como outro poeta cantador, Chico Maranhão, nos advertia: “Antonce se a gente veve lutando; vale mais, vale mais, vale mais; a gente se arreuní…” (1971). Reunir-se aos outros, conterrâneos e contemporâneos de alma, mas, sobretudo, reunir as nossas próprias partes solapadas e disjuntadas pelo espírito ocidental, judaico-cristão, capitalista, devidamente, perpetrados pela escolarização. Rejuntar as partes – como no grego antigo, “syn” (juntar) e “bolos” (partes), num pensamento efetivamente simbólico. Rejuntar o barro de nosso húmus para refazer a humanidade em nós, artesanalmente. Outra saudosa poetisa e cantadora, também maranhense, Irene Portela (1945-1999) anteciparia em sua canção “Folha Verde” (1979): “João-de-barro, tua moradia é bonita, mas só cabe a ti”. Façamos nossa casa de barro. Que outro mestre teria a criancice senão a própria natureza de que somos parte?
As lições da terra guiam a alma combatente, guerreira, lunar, sonhadora, solitária e gregária da criança (tudo no mesmo corpo, mas não necessariamente ao mesmo tempo, pois nela privilegia a alternância sábia dos ciclos). Gandhy sabe nos guiar aos labirintos destes caracóis-crianças que nos levam para dentro de nós mesmos a dialogar com a pedra, o barro, a chuva, o animal, o vento, a madeira, os trastes, os elementos, o minúsculo e, por conseguinte, o cósmico (ou mesmo, cosmogônico). Esses trastes que formam aqueles poetas e poetisas que nos iludem com a pequena estatura física e que sabem fazer contrastes. Imaginação vital que anima o ser por entre as rudezas do sertão, as inóspitas bocas devoradoras da cidade, a miséria e o abandono. A fruta compartilhada aqui deve ser comida ao cravar-se os dentes em sua carne e deixar o líquido néctar escorrer pelos lábios na fusão de nossos corpos brincantes: fruta e fruto. Em minhas lidas mitohermenêuticas, a instância etimológica é sempre um dos caminhos reveladores de sentidos, numa espécie de etimologia poética ou mitologia das palavras para ser fiel às tradições orais.
Tenho acompanhado a obra de Gandhy Piorski há alguns anos e, em especial, em sua dissertação de mestrado, O brinquedo e a imaginação da terra (2013), dividindo a orientação com a querida professora Eunice Simões Lins Gomes, da Universidade Federal da Paraíba. Nos cruzamos nas reflexões sobre o brincar por meio da grande amiga comum e pesquisadora ímpar nesta área, Renata Meirelles; com quem Gandhy realizou o belíssimo documentário Boi de Pedra (Dir.: Renata Meirelles e David Reeks, Ludus vídeo, 2012), com crianças no interior do Ceará. Também com ela, auxiliamos nos roteiros e argumentos dos filmes Sementes do Nosso Quintal (Dir.: Fernanda Heinz Figueiredo, Zinga, 2012) e Território do Brincar (Dir.: Renata Meirelles e David Reeks, Ludus/Alana, 2015).
São muitos os ocasos e causos, de dedos de prosa a cafés, de brincadeira que resulta sempre em lida grande e apaixonante. Mas, aqui, o testemunho daqueles que fazem da existência uma obra aberta e em permanente construção insiste no brincar matriciado pela imaginação vital dos elementos da natureza. As crianças são antífonas pequenas que respondem ao canto do chão quase num boca a boca. Aqui, a mão obreira se mescla com o olho contemplativo até que seus inversos se complementem no verso poético: o olho faz e a mão contempla. Ambos num corpo brincante apaixonado e apaixonante que, se o destino for benevolente, nos deixará o privilégio de ser húmus de novo e esterco às nossas próprias custas. Pessoas que conhecem o chão com a boca como processo de se procurarem essas movem-se de caracóis!
Enfim, o caracol: tem mãe de água/ avô de fogo/ e o passarinho nele sujará. Arrastará uma fera para o seu quarto/ usará chapéus de salto alto/ e há de ser esterco às suas próprias custas!
Manoel de Barros, 29 escritos para conhecimento do chão através de S. Francisco Assis, 1966
Marcos Ferreira-Santos
Professor de mitologia e livre-docente – USP
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