As linguagens dos quadrinhos: que sendo tantas, todo plural é pouco... - Editora Peirópolis

As linguagens dos quadrinhos: que sendo tantas, todo plural é pouco…

Prefácio à edição brasileira, por Waldomiro Vergueiro e Paulo Ramos

Obras sobre diferentes aspectos das histórias em quadrinhos – sua linguagem, inclusive – são resenhadas por Daniele Barbieri neste livro, em mais de um momento. Algumas delas, conforme afirma o pesquisador italiano, foram  relevantes para seus objetivos, porém chegaram até ele tardiamente. O intervalo entre a publicação original e a respectiva tradução acabou por datar o conteúdo dessas obras, ou ao menos parte dele, ofuscando um pouco a discussão que propiciaram. Cabe registrar que não é o caso de As Linguagens dos Quadrinhos, obra que enfim chega às mãos do leitor brasileiro. Tal qual um bom vinho, os anos só refinaram o conteúdo.

Conhecemos a obra de Daniele há alguns anos, possivelmente no início dos anos 2000, quando escolhemos uma versão espanhola de seu livro I Linguaggi del Fumetto como texto de discussão dos então iniciantes colóquios científicos do Observatório de Histórias em Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, reuniões mensais que fazemos a cada primeira sexta-feira do mês, para aprofundar a reflexão sobre os diversos aspectos das histórias em quadrinhos.

Não sabíamos, à época, que o livro havia sido originado da tese de doutorado do autor, defendida sob a orientação de ninguém menos que Umberto Eco, autor que está entre os pioneiros nos estudos sobre o tema – os quadrinhos foram abordados em mais de um ensaio de seu livro Apocalípticos e Integrados, publicado em 1965. Isso, absolutamente, não influenciou em nossa escolha. Mas deveria.

Como em todos os relacionamentos humanos, tampouco o nosso escapou de uma fase de aclimatação. Inicialmente, tivemos um pequeno e curioso desencontro com o autor: pensamos, errônea e brasileiramente, que este fosse do sexo feminino. A raiz do mal-entendido estava no primeiro nome do autor, em nosso país utilizado quase exclusivamente para mulheres. O equívoco não durou muito, felizmente, pois logo um de nós fez uma pesquisa na internet e descobriu que não era esse o caso.

Assim, desfeita a involuntária confusão, pudemos fazer plena justiça ao autor, tratando-o com o pronome correto e aprofundando a reflexão sobre sua obra. E, desta forma um pouco atribulada, o Daniele Barbieri entrou em nossas vidas, em nossas pesquisas e em nossas produções científicas. E nunca mais saiu.

Nessa época, não tínhamos muitas obras em português que discutissem a fundo os aspectos linguísticos das histórias em quadrinhos. As mais conhecidas, A Linguagem dos Quadrinhos: o Universo Estrutural de Ziraldo e Maurício de Sousa, de Moacy Cirne, Os Quadrinhos, de Antonio Luiz Cagnin, e Literatura da Imagem, versão lusitana do livro do espanhol Roman Gubern, haviam sido publicados na década de 1970 e início da de 1980.

Estavam fora de catálogo ou eram difíceis de ser encontradas em livrarias e sebos. A maioria de nós, inclusive, já as conhecia o suficiente e tínhamos a sensação, talvez indevida, de que pouca coisa a mais poderíamos tirar delas. Assim, o livro de Barbieri surgiu como uma opção muito promissora, pois trazia uma abordagem diferenciada em relação à linguagem dos quadrinhos.

Essa inovação surgia já no título do livro, que apresentava uma primeira surpresa. Não falava em linguagem, mas em linguagens – mais exatamente, Los Lenguajes del Cómic. Plural. E, assim, a primeira pergunta que nos fizemos foi: “Linguagens?”

E, o Daniele, já então nosso parceiro de reflexão, nos respondia de maneira clara já nas primeiras páginas, apontando as relações da linguagem dos quadrinhos com outras linguagens, que afirmava serem das ordens de inclusão (“a linguagem dos quadrinhos faz parte da parte da linguagem geral da narrativa, assim como o cinema e muitas outras linguagens que nos são familiares”), geração (“a linguagem do quadrinho é ‘filha’ de outras linguagens”), convergência (“parentescos horizontais, linguagens das quais os quadrinhos não descendem, mas com as quais são aparentados pelo fato de terem antepassados comuns […] ou de terem áreas expressivas em comum) e de adequação – “quando os quadrinhos acham mais simples imitar, reproduzir em seu interior outra linguagem […] do que buscar construir dentro de si possibilidades expressivas “equivalentes” [ou] “dito de outro modo, os quadrinhos ‘citam’ outra linguagem”.

Assim, o projeto do livro, como apresentado também na introdução da obra, passa a ser o de “atravessar as linguagens que atravessam a linguagem dos quadrinhos. […] falar desta linguagem não pelo que lhe é único, mas pelo que compartilha com outras linguagens nas relações” identificadas por Daniele Barbieri. Touché! Estava explicado.

Essa proposta guia a própria estrutura do livro, dividida em três grandes blocos: Linguagens de Imagem, que analisa a relação com ilustração, caricatura, pintura, fotografia e gráfica; de Temporalidade, que se debruça sobre as correspondências com a poesia, a música e a literatura; de Imagem e Temporalidade,  que aborda as relações com o teatro e o cinema.

Antes de iniciar a discussão, no entanto, o autor alerta o leitor que não se trata de divisões estanques:

É óbvio que alguns problemas tratados sob um título de uma linguagem poderiam aparecer também sob outro. Mas isso é uma consequência de nosso pressuposto básico: há características que são compartilhadas por diversas linguagens; a comunicação é um ambiente geral cujos sub-ambientes, as linguagens, vivem tumultuosamente, afastando-se, reaproximando-se, trocando características entre si, às vezes morrendo e outras dando vida a uma nova possibilidade expressiva.

Publicado originalmente em 1991, o livro de Daniele Barbieri completou 25 anos em 2016. Mais uma vez a comparação com a bebida preferida do deus grego Dionísio poderia ser aventada, pois a obra chega a essa idade respeitável sem perder seu atrativo para os estudiosos de quadrinhos da terra do autor da Divina Comédia, como atesta comemoração promovida nada menos que na Academia de Belas Artes de Bologna, da qual participaram vários estudiosos do meio e também o próprio autor. A Academia reconhecia, então, que o texto havia se constituído, nas duas décadas e meia de publicação, talvez no mais consagrado e difundido ensaio italiano sobre os quadrinhos, que praticamente se transformou em uma bibliografia obrigatória de grande parte das dissertações e teses acadêmicas elaboradas naquele país.

Um destino que, considerando a qualidade da obra e nossa agradável convivência de quase duas décadas com ela, não temos dúvida em afirmar que está igualmente à sua espera na sua trajetória em língua portuguesa.

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